sexta-feira, 26 de agosto de 2016

O LOUCO: CONCRETUDE DA IDEIA


Escapa de mim a palavra, mas a força do signo me conduz à expressão. E me subjugo a eternidade - soma de todos os tempos - e me plasmo no infinito - soma de todos os espaços -. E permito desintegrar-me em ideias, recorro ao sonho e ao delírio, e assim me transporto para o desconhecido. Impulsionado pela imaginação me elevo aos céus e desço às entranhas da terra. Permito-me queimar no magma. Adianto-me no espaço e no tempo e ultrapasso o brilho das estrelas. Desembaraço-me da consciência de mim... O pensamento desconhece então a tangência do existir. E então a vida me acontece... Destemido deslacro o mistério e me orno com os louros do que é insano em mim. Perco-me de mim, tu porém pega do fio da meada que se desprende em novelo de mim. E sabes que sou, embora eu já me despeça inebriado daquilo que seria tu. 


quinta-feira, 25 de agosto de 2016

QUANDO O AMOR ACONTECE



     Esta estória começa há incontáveis dias de meu passado. Naquela idade em que saímos da infância e vemo-nos repentinamente lançados para uma fase da vida repleta de mudanças. Quando se inicia a juventude.
     Havia eu principiado no progresso de meus estudos sempre afincadamente exigindo o máximo de mim no que se referia a brilhar como estudante. Tinha acabado uma fase escolar e ingressado após exame rigoroso de avaliação no ensino médio, que me colocava a poucos passos de uma possível universidade. Nessa fase da vida em que os sentimentos ainda dissolvidos como que numa pintura que vai para além da moldura de um quadro, iniciava eu sem o saber a configurar toda uma jornada que me conduziria a ingressar na vida adulta.
     Completava praticamente quinze anos. Tudo era festivo e movia-me eu como qualquer jovem ainda pela insondável ausência de tristezas profundas ou alegrias exultantes. Os sentimentos todos eram de uma espontaneidade inexplicável que se conduziam ao sofrer ao mesmo tempo também resultava numa maresia tranquila de ausência de qualquer dor.
     Lembro-me bem da alegria do ambiente familiar daqueles anos. Hoje já em idade bem avançada é que me dou conta do quanto era bom ter sempre quem me definia os limites de minhas ações. Ao despertar já me deparava com minha mãe à preparar o café da manhã enquanto meu pai prolongava um pouco mais seu descanso ainda recluso em seu quarto. Bem cedo saia da cama, pois deveria estar na escola pouco tempo depois do raiar do dia. Todos meus irmãos estudavam em horário diverso do meu, portanto tomava meu café da manhã calado num mutismo que envolvia eu e mamãe, e logo me despachava para pegar o ônibus que me conduziria ao colégio. Vestia meu uniforme exigido a critério e, nos dias de educação física, levava ainda para trocar no vestiário do colégio, o uniforme para as  aulas de prática de esportes.
     Havia namorado uma menina, Iolanda, no ginásio e apesar de termos interrompido o namoro estudava ela também no mesmo colégio. No primeiro ano não aconteceu de cruzarmos um com o outro. Eu muito saudável que era enfrentava o regime austero do colégio com plena disposição para as atividades em todos os aspectos do novo regime escolar estabelecido. Somente como sempre um pouco débil para a educação física.
     Foi quando no primeiro ano já passado uns três meses ou mais de aula, ao acaso me deparei com um rapaz no corredor da escola que chamou minha atenção. Isso devido a seu físico bem formado, músculos e altura bem definidos a dar inveja a qualquer um. Pele um pouco morena e cabelos pretos. Vez por outra cruzamos um com o outro subindo ou descendo as escadas do prédio escolar, bem como nos corredores.
    Mal sabia eu o que me reservava aquele personagem em minha vida conjugado a minha primeira namorada.
     Rigoroso que era o colégio na época, as classes dividiam-se em masculinas e femininas, o que deixou de vigorar a partir do segundo ano.
     Foi então que passada as férias de final de ano, vi-me quando regressei as aulas, dividindo com o colega de vista a mesma sala de aula que eu.
    Minha namorada fazia um curso especial preparatório para pedagogia. O que a colocava bem distante de mim era mesmo raro que nos encontrássemos. Para isso era necessário alguma coincidência, ou marcarmos mesmo um encontro.
     Logo no início do segundo ano o rapaz que conhecera no ano anterior e eu fizemos amizade e começamos a trocar conversa.  Já que estávamos na mesma sala, tornamo-nos íntimos um do outro. Certo, lembro-me bem, entrei na sala de aula e dei com ele lendo uma bíblia logo num dos primeiros dias de aula. Ele demonstrava estar bem concentrado na leitura e nem deu por mim. Comecei então a reparar que, sempre que havia algum momento de intervalo, fosse no decorrer das aulas ou mesmo no intervalo mais prolongado que tínhamos entre elas, sua atitude era sempre a mesma. Concentrava-se na leitura do livro sagrado e permanecia quieto.
    Marquei então um encontro com minha ex-namorada. Entrava eu ao acaso pelo portão do prédio quando demos um com o outro. Ela me chamou em particular e disse que tinha algo que queria muito me dizer. Pensei que na certa se tratasse de reatarmos o namoro. Mas, não disse coisa alguma, aguardei o dia do encontro.
     Para minha surpresa Iolanda nem tocou em assunto de namoro. Em lugar disso veio com um folheto nas mãos que entregou e disse que havia mudado de religião e queria que levasse adiante um estudo bíblico com ela. Surpreso não disse sim nem não. Simplesmente agradeci pelo panfleto e voltei à sala de aula, o sinal entre uma aula e outra já estava para tocar.
     Havia algo de peculiar quanto aos horários de meu novo amigo de turma. Ele não tinha um horário preciso para adentrar nas aulas. Mais tarde ele justificou isso me dizendo morar muito distante da escola e que conseguira uma autorização para entrada fora do horário determinado. Quase todos os dias ele compartilhava uma das primeiras carteiras da sala de aula, próxima da minha, com uma garota que se assentava como eu logo em uma das primeiras filas de alunos. Certo dia sem que eu menos esperasse meu amigo que passarei a chamar de Antônio Carlos, veio junto a mim com sua bíblia e interpelou-me. Qual era minha religião.
     - Católico – respondi eu.
     - Gostaria de estudar as escrituras comigo? Há muitas verdades que você deve conhecer. Estou certo que se dedicar tempo a um estudo comigo haverá de dar-se conta do quanto sua religião é infiel ao que diz a bíblia. – Foram mais ou menos estas suas palavras.
     Eu não vi maldade nenhuma em sua proposta. E disse que podíamos sim estudar as escrituras. Ele então já de iniciou em breves momentos de tempo que dispomos durante as aulas, me apontou versículos da bíblia, que iam de encontro com a doutrina católica. Como a questão de ídolos e imagens, a reverência e culto a virgem Maria, o celibato de padres e freiras e etc... Nada daquilo me surpreendia, sabia bem o que um protestante pensava do catolicismo.
    E assim fui para casa tranquilo como sempre. Ao chegar almocei e dei conta de apressar as tarefas de escola para que pudesse descansar. Lembrei-me então da abordagem de Antônio Carlos sobre a religião e a bíblia e de imediato fui em busca de duas que tinha em casa. Uma católica que uma de minhas irmãs ganhara de uma amiga íntima de mamãe. E outra protestante também presenteada a uma de minhas irmãs por alguém que eu desconhecia. Não era mesmo hábito ler-se a bíblia em minha casa. Levei as duas para o quarto e as deixei lá. Retirei da gaveta do criado mudo o panfleto religioso que Iolanda me dera e coloquei junto das duas bíblias.
    Já no dia seguinte iniciou-se sem que menos me desse conta o que seria por mais de um ano, um verdadeiro embate, um duelo entre Iolanda e meu amigo, cada um a querer convencer-me da verdade de sua religião em detrimento da minha. Em busca de minha conversão ao protestantismo. Perspicaz que sempre fui, a cada ponto que apontavam como verdade irrefutável, outro ponto a seguir ou quase junto eu deixava em aberto quanto ao meu impasse, em que me colocavam sobre a religiosidade. E era impasse meu, pois ambos estavam plenamente convencidos de suas crenças, e se davam por donos da verdade.
     Foi então, que certo dia, inesperadamente, principiei a ver e a sentir algo quanto à pessoa de meu amigo. Algo de inusitado e incomum. Uma coisa inexplicável que me varria todos os recônditos de meu ser. Entristecia-me a alma, e provoca desconforto imenso em meu coração, meus sentimentos.
         Não sabia e nem consegui por quase que mais de um ano definir os sentimentos que começaram a medrar em mim, a se instalar em meu coração liberto ainda de emoções fortes. Acordava-me e adormecia pensando em meu amigo. E quanto mais junto dele estava, mais junto desejava permanecer. Iolanda e o sentimento que nos unira de modo algum tinha lugar no palco de minhas emoções durante esse longo espaço de tempo. E meus dias me foram por verdadeiro suplício. Em meu ser foi invadido por sentimentos que me embriagaram. Tomado fui por profunda comoção que a pessoa de meu amigo despertava em mim.
     Foram dias mesmo insuportáveis logo de início. Porém com o passar do tempo cheguei a habituar-me com todo o drama a que me vi lançado naquela ocasião. As discussões religiosas serviam de um caminho para ter junto de mim meu então venerado amigo. E tudo transcorria a meu ver de forma natural e sem nenhuma maldade ou qualquer coisa do gênero.
     Todos os dias por longo tempo lia a bíblia em companhia dele, levava minhas dúvidas até Iolanda que as rebatia com outra visão das escrituras.
     E assim transcorreu-se praticamente por mais de um ano todo esse embate religioso, bem como meu sentimento inexplicável pelo rapaz.
    Certo dia ao acaso, perguntei se podia lhe escrever uma carta e ele disse que não haveria problema.
    Deu-me então seu endereço e logo quase que no dia seguinte fui até lá, só para poder ver de longe onde residia aquele que no momento era senhor de meus pensamentos, e tanto me fazia sofrer quieto e em silêncio.  Para minha surpresa, embora o endereço ficava em região bem mais nobre que onde morava eu, próximo ao centro da capital da cidade. Sua casa ficava nas proximidades de um cemitério, numa ruazinha sem saída onde as casinhas se amontoavam. Doeu-me a pobreza de meu amigo tão chegado.
     Foi então que aproximou-se meu ingresso para o terceiro ano do colégio. Tomei eu como que séria decisão. Decidi-me mesmo a dar outro rumo a tudo o que se passava.
     Arrumei um emprego e comecei a trabalhar num banco com objetivo de iniciar mesmo a ter meu próprio dinheiro e começar a conquistar a independência de meus pais.  Rumo a minha liberdade. Liberdade comum aspirada por qualquer adolescente que adentra a juventude.
    Iniciou-se as aulas do terceiro ano do colégio. A memória de meu amigo que deixara no período matutino, continuava ainda a não só inquietar-me, como permanecia impertinente a conduzindo-me à tristeza e à saudade.
  
      Certa noite quando estava em plena aula, repentinamente batem à porta da sala  o professor dirige-se até ela e abre. Para surpresa minha ele disse que alguém me chamava ao corredor. Pedi permissão e sai, alertado pelo professor que não me demorasse.
    Qual não foi meu espanto quando me deparei com meu amigo que se postava à minha frente, com seu ar distraidamente decisivo e corajoso como sempre. Estremeci mesmo da cabeça aos pés, acreditava-me livre e liberto daquele fantasma.
    Exigia meu caro amigo da época, uma explicação para o fato de eu haver mudado de período. Sem participar-lhe nada. Como se nossa amizade não tivesse significado algum.
     Eu então meio desconcertado disse de modo incisivo.   
     - Volte amanhã na hora do intervalo e então sairei mais cedo do colégio e conversaremos.
     E assim se deu. No dia seguinte no horário de intervalo
das aulas o rapaz apareceu repentinamente na entrada do pátio da escola. Fui ao seu encontro e saímos a passear pelas redondezas próximas, não nos arriscando ir muito longe do prédio escolar, já era tarde da noite.
    Eu caminhei por longo tempo calado. Só ouvia meu amigo em seus protestos de completa ausência de sentimento de amizade de minha parte para com ele.
Como era capaz de desfazer os vínculos que tínhamos daquele modo. Tão inesperado como de forma a nunca mais nos encontrarmos.
      A esta altura interrompi ele e aproveitando-me do ensejo disse sem dar-me conta de minhas palavras:
     - Era exatamente mesmo este meu objetivo. Separar-me de você de modo a não deixar rastro que permitisse que me seguisse e voltássemos a ter contato.
    - Como diz uma coisa destas? – Interrogou-me surpreso com minhas palavras o meu caro amigo.
   Eu então tomado de imensa coragem que me veio, desatei num palavreado de certo modo longo, porém incisivo naquilo que tinha a dizer. De uma vez só coloquei todo o exaltado sentimento que me envolvia a sua pessoa. Como ainda o sofrimento que isso me causava. E a certeza de que era o melhor para nós a separação. Não via sentido em mantermos aquela, desproposital amizade. Embora tão bela e de caráter tão puro.
     Ao terminar quase que chorava tal era a profundidade emocional que me envolvia. Para o meu amigo também não foi diferente, ele numa atitude que percebia eu de assombro, ouviu-me em tudo e guardou longo silêncio o qual eu não ousei interromper. A verdade é que minha vontade era de ver-me livre dele o mais rápido possível.
    Subitamente ele começou a soltar algumas palavras de modo titubeante, sua voz tremia.
    Resumidamente leitor foi isto que meu amigo me disse:
“Eu também sempre senti algo de muito profundo mesmo por você. A meu modo nunca consegui explicação para o sentimento que nos unia. Se vim lhe procurar nesta noite foi exatamente porque não sabia mesmo como conduzir minha vida na ausência de sua companhia, que sempre quis como sombra a meu lado. Se ninguém se escandalizasse estou certo que trocaríamos mesmo um beijo na face toda vez que nos encontrássemos”.
    Eu permaneci em silêncio e deste modo então nos

despedimos violentamente um do outro. Não houve aperto de mão ou abraço. A força com que contínhamos nossas emoções tornou tudo imperiosamente difícil para ambos nós dois e nada mais fizemos que seguir rumos opostos na escuridão da noite que nos envolvia.


FIM

                                         Ivan de Alencar