QUANDO O AMOR ACONTECE
Esta estória
começa há incontáveis dias de meu passado. Naquela idade em que saímos da
infância e vemo-nos repentinamente lançados para uma fase da vida repleta de
mudanças. Quando se inicia a juventude.
Havia eu
principiado no progresso de meus estudos sempre afincadamente exigindo o máximo
de mim no que se referia a brilhar como estudante. Tinha acabado uma fase
escolar e ingressado após exame rigoroso de avaliação no ensino médio, que me
colocava a poucos passos de uma possível universidade. Nessa fase da vida em
que os sentimentos ainda dissolvidos como que numa pintura que vai para além da
moldura de um quadro, iniciava eu sem o saber a configurar toda uma jornada que
me conduziria a ingressar na vida adulta.
Completava
praticamente quinze anos. Tudo era festivo e movia-me eu como qualquer jovem
ainda pela insondável ausência de tristezas profundas ou alegrias exultantes.
Os sentimentos todos eram de uma espontaneidade inexplicável que se conduziam
ao sofrer ao mesmo tempo também resultava numa maresia tranquila de ausência de
qualquer dor.
Lembro-me bem da
alegria do ambiente familiar daqueles anos. Hoje já em idade bem avançada é que
me dou conta do quanto era bom ter sempre quem me definia os limites de minhas
ações. Ao despertar já me deparava com minha mãe à preparar o café da manhã
enquanto meu pai prolongava um pouco mais seu descanso ainda recluso em seu
quarto. Bem cedo saia da cama, pois deveria estar na escola pouco tempo depois
do raiar do dia. Todos meus irmãos estudavam em horário diverso do meu, portanto
tomava meu café da manhã calado num mutismo que envolvia eu e mamãe, e logo me
despachava para pegar o ônibus que me conduziria ao colégio. Vestia meu
uniforme exigido a critério e, nos dias de educação física, levava ainda para
trocar no vestiário do colégio, o uniforme para as aulas de prática de esportes.
Havia namorado uma
menina, Iolanda, no ginásio e apesar de termos interrompido o namoro estudava ela
também no mesmo colégio. No primeiro ano não aconteceu de cruzarmos um com o
outro. Eu muito saudável que era enfrentava o regime austero do colégio com
plena disposição para as atividades em todos os aspectos do novo regime escolar
estabelecido. Somente como sempre um pouco débil para a educação física.
Foi quando no
primeiro ano já passado uns três meses ou mais de aula, ao acaso me deparei com
um rapaz no corredor da escola que chamou minha atenção. Isso devido a seu
físico bem formado, músculos e altura bem definidos a dar inveja a qualquer um.
Pele um pouco morena e cabelos pretos. Vez por outra cruzamos um com o outro
subindo ou descendo as escadas do prédio escolar, bem como nos corredores.
Mal sabia eu o que
me reservava aquele personagem em minha vida conjugado a minha primeira
namorada.
Rigoroso que era o
colégio na época, as classes dividiam-se em masculinas e femininas, o que
deixou de vigorar a partir do segundo ano.
Foi então que
passada as férias de final de ano, vi-me quando regressei as aulas, dividindo
com o colega de vista a mesma sala de aula que eu.
Minha namorada
fazia um curso especial preparatório para pedagogia. O que a colocava bem
distante de mim era mesmo raro que nos encontrássemos. Para isso era necessário
alguma coincidência, ou marcarmos mesmo um encontro.
Logo no início do
segundo ano o rapaz que conhecera no ano anterior e eu fizemos amizade e
começamos a trocar conversa. Já que
estávamos na mesma sala, tornamo-nos íntimos um do outro. Certo, lembro-me bem,
entrei na sala de aula e dei com ele lendo uma bíblia logo num dos primeiros
dias de aula. Ele demonstrava estar bem concentrado na leitura e nem deu por
mim. Comecei então a reparar que, sempre que havia algum momento de intervalo,
fosse no decorrer das aulas ou mesmo no intervalo mais prolongado que tínhamos
entre elas, sua atitude era sempre a mesma. Concentrava-se na leitura do livro
sagrado e permanecia quieto.
Marquei então um
encontro com minha ex-namorada. Entrava eu ao acaso pelo portão do prédio
quando demos um com o outro. Ela me chamou em particular e disse que tinha algo
que queria muito me dizer. Pensei que na certa se tratasse de reatarmos o
namoro. Mas, não disse coisa alguma, aguardei o dia do encontro.
Para minha
surpresa Iolanda nem tocou em assunto de namoro. Em lugar disso veio com um
folheto nas mãos que entregou e disse que havia mudado de religião e queria que
levasse adiante um estudo bíblico com ela. Surpreso não disse sim nem não.
Simplesmente agradeci pelo panfleto e voltei à sala de aula, o sinal entre uma
aula e outra já estava para tocar.
Havia algo de
peculiar quanto aos horários de meu novo amigo de turma. Ele não tinha um
horário preciso para adentrar nas aulas. Mais tarde ele justificou isso me
dizendo morar muito distante da escola e que conseguira uma autorização para
entrada fora do horário determinado. Quase todos os dias ele compartilhava uma
das primeiras carteiras da sala de aula, próxima da minha, com uma garota que
se assentava como eu logo em uma das primeiras filas de alunos. Certo dia sem
que eu menos esperasse meu amigo que passarei a chamar de Antônio Carlos, veio
junto a mim com sua bíblia e interpelou-me. Qual era minha religião.
- Católico –
respondi eu.
- Gostaria de
estudar as escrituras comigo? Há muitas verdades que você deve conhecer. Estou
certo que se dedicar tempo a um estudo comigo haverá de dar-se conta do quanto
sua religião é infiel ao que diz a bíblia. – Foram mais ou menos estas suas
palavras.
Eu não vi maldade
nenhuma em sua proposta. E disse que podíamos sim estudar as escrituras. Ele
então já de iniciou em breves momentos de tempo que dispomos durante as aulas,
me apontou versículos da bíblia, que iam de encontro com a doutrina católica.
Como a questão de ídolos e imagens, a reverência e culto a virgem Maria, o
celibato de padres e freiras e etc... Nada daquilo me surpreendia, sabia bem o
que um protestante pensava do catolicismo.
E assim fui para
casa tranquilo como sempre. Ao chegar almocei e dei conta de apressar as
tarefas de escola para que pudesse descansar. Lembrei-me então da abordagem de
Antônio Carlos sobre a religião e a bíblia e de imediato fui em busca de duas
que tinha em casa. Uma católica que uma de minhas irmãs ganhara de uma amiga
íntima de mamãe. E outra protestante também presenteada a uma de minhas irmãs
por alguém que eu desconhecia. Não era mesmo hábito ler-se a bíblia em minha
casa. Levei as duas para o quarto e as deixei lá. Retirei da gaveta do criado
mudo o panfleto religioso que Iolanda me dera e coloquei junto das duas
bíblias.
Já no dia seguinte
iniciou-se sem que menos me desse conta o que seria por mais de um ano, um
verdadeiro embate, um duelo entre Iolanda e meu amigo, cada um a querer convencer-me
da verdade de sua religião em detrimento da minha. Em busca de minha conversão
ao protestantismo. Perspicaz que sempre fui, a cada ponto que apontavam como
verdade irrefutável, outro ponto a seguir ou quase junto eu deixava em aberto
quanto ao meu impasse, em que me colocavam sobre a religiosidade. E era impasse
meu, pois ambos estavam plenamente convencidos de suas crenças, e se davam por
donos da verdade.
Foi então, que
certo dia, inesperadamente, principiei a ver e a sentir algo quanto à pessoa de
meu amigo. Algo de inusitado e incomum. Uma coisa inexplicável que me varria
todos os recônditos de meu ser. Entristecia-me a alma, e provoca desconforto
imenso em meu coração, meus sentimentos.
Não sabia e nem consegui por quase que mais
de um ano definir os sentimentos que começaram a medrar em mim, a se instalar
em meu coração liberto ainda de emoções fortes. Acordava-me e adormecia
pensando em meu amigo. E quanto mais junto dele estava, mais junto desejava
permanecer. Iolanda e o sentimento que nos unira de modo algum tinha lugar no
palco de minhas emoções durante esse longo espaço de tempo. E meus dias me
foram por verdadeiro suplício. Em meu ser foi invadido por sentimentos que me
embriagaram. Tomado fui por profunda comoção que a pessoa de meu amigo
despertava em mim.
Foram dias mesmo
insuportáveis logo de início. Porém com o passar do tempo cheguei a habituar-me
com todo o drama a que me vi lançado naquela ocasião. As discussões religiosas
serviam de um caminho para ter junto de mim meu então venerado amigo. E tudo
transcorria a meu ver de forma natural e sem nenhuma maldade ou qualquer coisa
do gênero.
Todos os dias por
longo tempo lia a bíblia em companhia dele, levava minhas dúvidas até Iolanda
que as rebatia com outra visão das escrituras.
E assim
transcorreu-se praticamente por mais de um ano todo esse embate religioso, bem
como meu sentimento inexplicável pelo rapaz.
Certo dia ao acaso,
perguntei se podia lhe escrever uma carta e ele disse que não haveria problema.
Deu-me então seu
endereço e logo quase que no dia seguinte fui até lá, só para poder ver de
longe onde residia aquele que no momento era senhor de meus pensamentos, e
tanto me fazia sofrer quieto e em silêncio. Para minha surpresa, embora o endereço ficava
em região bem mais nobre que onde morava eu, próximo ao centro da capital da
cidade. Sua casa ficava nas proximidades de um cemitério, numa ruazinha sem
saída onde as casinhas se amontoavam. Doeu-me a pobreza de meu amigo tão
chegado.
Foi então que
aproximou-se meu ingresso para o terceiro ano do colégio. Tomei eu como que
séria decisão. Decidi-me mesmo a dar outro rumo a tudo o que se passava.
Arrumei um emprego
e comecei a trabalhar num banco com objetivo de iniciar mesmo a ter meu próprio
dinheiro e começar a conquistar a independência de meus pais. Rumo a minha liberdade. Liberdade comum
aspirada por qualquer adolescente que adentra a juventude.
Iniciou-se as aulas
do terceiro ano do colégio. A memória de meu amigo que deixara no período
matutino, continuava ainda a não só inquietar-me, como permanecia impertinente
a conduzindo-me à tristeza e à saudade.
Certa noite
quando estava em plena aula, repentinamente batem à porta da sala o professor dirige-se até ela e abre. Para
surpresa minha ele disse que alguém me chamava ao corredor. Pedi permissão e
sai, alertado pelo professor que não me demorasse.
Qual não foi meu
espanto quando me deparei com meu amigo que se postava à minha frente, com seu
ar distraidamente decisivo e corajoso como sempre. Estremeci mesmo da cabeça
aos pés, acreditava-me livre e liberto daquele fantasma.
Exigia meu caro
amigo da época, uma explicação para o fato de eu haver mudado de período. Sem
participar-lhe nada. Como se nossa amizade não tivesse significado algum.
Eu então meio
desconcertado disse de modo incisivo.
- Volte amanhã na
hora do intervalo e então sairei mais cedo do colégio e conversaremos.
E assim se deu. No
dia seguinte no horário de intervalo
das aulas o rapaz apareceu repentinamente na entrada do pátio
da escola. Fui ao seu encontro e saímos a passear pelas redondezas próximas,
não nos arriscando ir muito longe do prédio escolar, já era tarde da noite.
Eu caminhei por
longo tempo calado. Só ouvia meu amigo em seus protestos de completa ausência
de sentimento de amizade de minha parte para com ele.
Como era capaz de desfazer os vínculos que tínhamos daquele
modo. Tão inesperado como de forma a nunca mais nos encontrarmos.
A esta altura
interrompi ele e aproveitando-me do ensejo disse sem dar-me conta de minhas
palavras:
- Era exatamente
mesmo este meu objetivo. Separar-me de você de modo a não deixar rastro que
permitisse que me seguisse e voltássemos a ter contato.
- Como diz uma
coisa destas? – Interrogou-me surpreso com minhas palavras o meu caro amigo.
Eu então tomado de
imensa coragem que me veio, desatei num palavreado de certo modo longo, porém
incisivo naquilo que tinha a dizer. De uma vez só coloquei todo o exaltado
sentimento que me envolvia a sua pessoa. Como ainda o sofrimento que isso me
causava. E a certeza de que era o melhor para nós a separação. Não via sentido
em mantermos aquela, desproposital amizade. Embora tão bela e de caráter tão
puro.
Ao terminar quase
que chorava tal era a profundidade emocional que me envolvia. Para o meu amigo
também não foi diferente, ele numa atitude que percebia eu de assombro,
ouviu-me em tudo e guardou longo silêncio o qual eu não ousei interromper. A
verdade é que minha vontade era de ver-me livre dele o mais rápido possível.
Subitamente ele
começou a soltar algumas palavras de modo titubeante, sua voz tremia.
Resumidamente
leitor foi isto que meu amigo me disse:
“Eu também sempre senti algo de muito profundo mesmo por
você. A meu modo nunca consegui explicação para o sentimento que nos unia. Se
vim lhe procurar nesta noite foi exatamente porque não sabia mesmo como
conduzir minha vida na ausência de sua companhia, que sempre quis como sombra a
meu lado. Se ninguém se escandalizasse estou certo que trocaríamos mesmo um
beijo na face toda vez que nos encontrássemos”.
Eu permaneci em
silêncio e deste modo então nos
despedimos violentamente um do outro. Não houve aperto de mão ou abraço. A força com que contínhamos nossas emoções tornou tudo imperiosamente difícil para ambos nós dois e nada mais fizemos que seguir rumos opostos na escuridão da noite que nos envolvia.
FIM
Ivan
de Alencar
Maravilhoso!!!
ResponderExcluirGrato caro amigo.
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