segunda-feira, 21 de março de 2016

ARTHUR E O DESENCONTRO DE UMA VIDA

         Como falarei daquilo que só me conduz ao espanto e nada mais. Como obter um rumo para as palavras se o que pretendo dizer condiz em violar de certa forma o lacre de um silêncio que prometi  manter inviolável.
         Haverei de estabelecer entre eu e quem me lê um pacto, uma espécie de ruptura. Estabelecerei uma trincheira. Traçarei duas paralelas, para que possa abrir um vão  entre eu e Arthur. Entre eu e aquele que me leva como que a sentir-me atraiçoado, pois em verdade é essa a questão, devo trair a mim mesmo. E trair-me logo em minha essência, pois no momento exato em que transcrevo aqui o que se passou, me dou conta que haverá em mim um arrependimento. Um arrependimento eterno em haver eu  atrevido-me  a narrar algo que pode depor contra mim mesmo. Pois o que pretendo aqui é estabelecer um julgamento, determinar uma sentença, fixar um veredito.
         Tenho para mim que aqueles que se sabem capazes de vileza, ou que não se importam em optar pela mentira, quando a verdade lhes está não só ao alcance, mas inclusive lhes bate à porta, deveriam eximir-se de julgar ao seu próximo em qualquer  ato, sentimento ou mesmo comportamento que assim o seja.
         Arthur não era em verdade o tipo de pessoa confiável, eu o sabia bem, conhecíamos ambos, um ao outro o suficiente, para que se estabelecesse entre nós, desde uma possível cumplicidade, até o mais completo repúdio.
         No entanto, permiti que se prolongasse nossa convivência, pois lá no fundo sabia, que se existia alguém capaz de guardar um segredo, algo que não me deixaria exposto ao cadafalso esse  alguém era Arthur.
         Sendo assim decidi que partilharia com ele o que se passou em minha vida, e transformou-me num marginal  ou melhor dizendo, me pôs a margem do comum das pessoas. Pois não é qualquer um, que havendo cometido um crime, consegue ocultá-lo por um longo espaço de tempo, mantendo em seu íntimo a mais pura e indelével ausência de remorso.
         Tinha para mim ainda como que incontestável, a certeza de que não me eximiria em cometer um segundo crime para ocultar o primeiro, se necessário  fosse.
         Sendo assim,  revesti meu relacionamento com Arthur, guardião de um segredo meu, com o mesmo caráter que reveste um criminoso à um sacerdote ao qual confessa seu crime. Sabedor que em seu sacerdócio aquele que  recebeu o segredo jamais decairá de seu posto de sacerdote violando seu juramento perante o confessionário.
         E tornamo-nos íntimos. E partilhamos momentos inesquecíveis, ao menos para mim, que sabia lá em meu íntimo, plenamente capaz de dar fim ao  outro se me revelasse em confissão.
        

          Numa tarde de domingo, quando resolvidos a encompridar um pouco mais o tempo que dispúnhamos da companhia um do outro, decidi por a prova meu companheiro.
         Acrescentei em poucas e lacônicas palavras que logo eu, um assassino no passado, haveria não só de redimir-me de meu crime, bem como bonificaria quem se propusesse a auxiliar-me nisso.
         Concluiu daí meu companheiro, que estava eu disposto a pegar a pena por meu delito. Mal sabia ele, que minha intenção primeira era em verdade, resgatar-me justamente da possibilidade de me ver delatado.
         Separamo-nos após eu haver afirmado convictamente a ele, que estivesse prevenido, pois eu em breve na certa estaria atrás das grades pagando minha a pena.
         Resolvido em acabar com aquilo que considerava um verdadeiro desencontro de vida,  pois sabia que a qualquer momento poderia cair nas mãos daquele que era senhor de meu segredo. Não me foi necessário muita coragem para que arquitetasse um ardil, através do qual me veria livre inclusive da possibilidade mesmo de uma chantagem. Pois Arthur como o disse, não era pessoa confiável. E se por um espaço considerável de tempo houve entre nós convivência, foi porque de minha parte, em meu íntimo, satisfazia-me a idéia de alguém conivente com minha condição de criminoso.
         No espaço de uma semana consegui planejar tudo. Conhecia um local, onde não só poderia dar cabo de meu companheiro, bem como de forma alguma descobririam onde estaria oculto seu cadáver.
         Tratava-se de um local pouco freqüentado, uma verdadeira mata nos arredores da cidade, onde havia um poço profundo, há muito na certa abandonado e inclusive lacrado por uma tampa de cimento. Ninguém jamais deduziria que ali, bem naquele local, ocultar-se-iam dois corpos. Um lá depositado por mim há bom tempo quando de meu primeiro assassinato. O segundo seria o de Arthur.
         Marquei  um encontro pois com ele, e propus que fossemos conhecer um local deveras curioso, que poucos costumavam na certa freqüentar.
         Chegamos à citada mata e conduzi  meu companheiro até o local do poço. Ao chegar lá, convenci-o a auxiliar-me em remover a tampa do mesmo para que avaliássemos sua profundidade.
         Removida a tampa, olhei para o interior do poço e exclamei: “veja, parece que há água! E algo flutua nela!”
         Arthur então debruçasse na beirada do buraco eu por minha vez sem hesitar empurro-o para as profundezas do poço.
          Ouvi o som do impacto no que seria o charco no fundo do buraco, e um princípio de grito, o qual silencie de imediato, usando de todas as minhas forças e lacrando  com a tampa de cimento novamente o poço.
         Acendi um cigarro, observei a paisagem a meu redor, e confiante que mais uma vez estava liberto de qualquer possibilidade de condenação parti rumo à cidade.
         Mal dei dez passos em direção a minha liberdade, de certa forma viciosa, - liberdade daqueles que ousam estabelecer para si próprios suas próprias leis -,  e esbarrei num guarda. Um policial que passara por  acaso no local e presenciou a distância o momento em que atirei o corpo de Arthur nas profundezas do poço e lacrei com a tampa.
         Hoje, decido a narrar o que se passou de dentro da cela quadrada,  fria e inóspita em que me encontro. Ainda trago em minha alma a mesma atitude de irreverência. Importando-me pouco com o fato de estar privado de uma possível pretensão de redimir-me.
         Em verdade, o que me importa é saber que a natureza daquilo que deixou de ser segredo, tornando-se mesmo manchete de jornais, é também de certa forma, algo que cedo escapa à memória dos que conhecedores do fato, julgaram-me, condenaram-me e determinaram-me a sentença.
         Esquecido em minha cela, sei também que,  dissolvida se encontra na marginalidade o que disse se entrincheirar entre eu e Arthur. Meu remorso. E permanece incontestável  para mim, e só para mim, minha heróica libertação.




FIM

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