ARTHUR E O DESENCONTRO DE UMA VIDA
Como falarei daquilo que só me conduz
ao espanto e nada mais. Como obter um rumo para as palavras se o que pretendo
dizer condiz em violar de certa forma o lacre de um silêncio que prometi manter inviolável.
Haverei de estabelecer entre eu e quem
me lê um pacto, uma espécie de ruptura. Estabelecerei uma trincheira. Traçarei
duas paralelas, para que possa abrir um vão
entre eu e Arthur. Entre eu e aquele que me leva como que a sentir-me
atraiçoado, pois em verdade é essa a questão, devo trair a mim mesmo. E
trair-me logo em minha essência, pois no momento exato em que transcrevo aqui o
que se passou, me dou conta que haverá em mim um arrependimento. Um arrependimento
eterno em haver eu atrevido-me a narrar algo que pode depor contra mim mesmo.
Pois o que pretendo aqui é estabelecer um julgamento, determinar uma sentença,
fixar um veredito.
Tenho para mim que aqueles que se sabem
capazes de vileza, ou que não se importam em optar pela mentira, quando a
verdade lhes está não só ao alcance, mas inclusive lhes bate à porta, deveriam
eximir-se de julgar ao seu próximo em qualquer ato, sentimento ou mesmo comportamento que
assim o seja.
Arthur não era em verdade o tipo de
pessoa confiável, eu o sabia bem, conhecíamos ambos, um ao outro o suficiente,
para que se estabelecesse entre nós, desde uma possível cumplicidade, até o
mais completo repúdio.
No entanto, permiti que se prolongasse
nossa convivência, pois lá no fundo sabia, que se existia alguém capaz de
guardar um segredo, algo que não me deixaria exposto ao cadafalso esse alguém era Arthur.
Sendo assim decidi que partilharia com
ele o que se passou em minha vida, e transformou-me num marginal ou melhor dizendo, me pôs a margem do comum
das pessoas. Pois não é qualquer um, que havendo cometido um crime, consegue
ocultá-lo por um longo espaço de tempo, mantendo em seu íntimo a mais pura e
indelével ausência de remorso.
Tinha para mim ainda como que
incontestável, a certeza de que não me eximiria em cometer um segundo crime
para ocultar o primeiro, se necessário fosse.
Sendo assim, revesti meu relacionamento com Arthur,
guardião de um segredo meu, com o mesmo caráter que reveste um criminoso à um
sacerdote ao qual confessa seu crime. Sabedor que em seu sacerdócio aquele
que recebeu o segredo jamais decairá de
seu posto de sacerdote violando seu juramento perante o confessionário.
E tornamo-nos íntimos. E partilhamos
momentos inesquecíveis, ao menos para mim, que sabia lá em meu íntimo,
plenamente capaz de dar fim ao outro se
me revelasse em confissão.
Numa tarde de domingo, quando
resolvidos a encompridar um pouco mais o tempo que dispúnhamos da companhia um
do outro, decidi por a prova meu companheiro.
Acrescentei em poucas e lacônicas
palavras que logo eu, um assassino no passado, haveria não só de redimir-me de
meu crime, bem como bonificaria quem se propusesse a auxiliar-me nisso.
Concluiu daí meu companheiro, que
estava eu disposto a pegar a pena por meu delito. Mal sabia ele, que minha
intenção primeira era em verdade, resgatar-me justamente da possibilidade de me
ver delatado.
Separamo-nos após eu haver afirmado
convictamente a ele, que estivesse prevenido, pois eu em breve na certa estaria
atrás das grades pagando minha a pena.
Resolvido em acabar com aquilo que
considerava um verdadeiro desencontro de vida, pois sabia que a qualquer momento poderia cair
nas mãos daquele que era senhor de meu segredo. Não me foi necessário muita
coragem para que arquitetasse um ardil, através do qual me veria livre
inclusive da possibilidade mesmo de uma chantagem. Pois Arthur como o disse,
não era pessoa confiável. E se por um espaço considerável de tempo houve entre
nós convivência, foi porque de minha parte, em meu íntimo, satisfazia-me a
idéia de alguém conivente com minha condição de criminoso.
No espaço de uma semana consegui
planejar tudo. Conhecia um local, onde não só poderia dar cabo de meu
companheiro, bem como de forma alguma descobririam onde estaria oculto seu
cadáver.
Tratava-se de um local pouco
freqüentado, uma verdadeira mata nos arredores da cidade, onde havia um poço
profundo, há muito na certa abandonado e inclusive lacrado por uma tampa de cimento.
Ninguém jamais deduziria que ali, bem naquele local, ocultar-se-iam dois
corpos. Um lá depositado por mim há bom tempo quando de meu primeiro
assassinato. O segundo seria o de Arthur.
Marquei um encontro pois com ele, e propus que
fossemos conhecer um local deveras curioso, que poucos costumavam na certa
freqüentar.
Chegamos à citada mata e conduzi meu companheiro até o local do poço. Ao chegar
lá, convenci-o a auxiliar-me em remover a tampa do mesmo para que avaliássemos
sua profundidade.
Removida a tampa, olhei para o interior
do poço e exclamei: “veja, parece que há água! E algo flutua nela!”
Arthur então debruçasse na beirada do
buraco eu por minha vez sem hesitar empurro-o para as profundezas do poço.
Ouvi o som do impacto no que seria o
charco no fundo do buraco, e um princípio de grito, o qual silencie de
imediato, usando de todas as minhas forças e lacrando com a tampa de cimento novamente o poço.
Acendi um cigarro, observei a paisagem
a meu redor, e confiante que mais uma vez estava liberto de qualquer
possibilidade de condenação parti rumo à cidade.
Mal dei dez passos em direção a minha
liberdade, de certa forma viciosa, - liberdade daqueles que ousam estabelecer
para si próprios suas próprias leis -, e
esbarrei num guarda. Um policial que passara por acaso no local e presenciou a distância o
momento em que atirei o corpo de Arthur nas profundezas do poço e lacrei com a
tampa.
Hoje, decido a narrar o que se passou
de dentro da cela quadrada, fria e
inóspita em que me encontro. Ainda trago em minha alma a mesma atitude de
irreverência. Importando-me pouco com o fato de estar privado de uma possível
pretensão de redimir-me.
Em verdade, o que me importa é saber
que a natureza daquilo que deixou de ser segredo, tornando-se mesmo manchete de
jornais, é também de certa forma, algo que cedo escapa à memória dos que
conhecedores do fato, julgaram-me, condenaram-me e determinaram-me a sentença.
Esquecido em minha cela, sei também
que, dissolvida se encontra na
marginalidade o que disse se entrincheirar entre eu e Arthur. Meu remorso. E
permanece incontestável para mim, e só
para mim, minha heróica libertação.
FIM
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