sábado, 19 de março de 2016

UMA CRÔNICA

“CINZAS NA LAREIRA”
 
     Alice contemplou o porta retratos na estante de livros. Emocionou-se ao recordar-se daquela face jovial junto à sua na fotografia. Sentiu mesmo um calafrio e assustou-se. Como o tempo pode estacionar num simples retrato. Já se distanciavam alguns anos do dia em que aquela foto fora tirada. Foto que parecia congelar duas faces lado a lado. Reclinou-se por alguns momentos no sofá da sala de estar de seu confortável apartamento, e ponderou consigo que enquanto no passado os egípcios ambicionavam eternizar-se através de suas múmias, o homem manteve essa atitude e terminou por esbarrar na fotografia.
        Como toda mulher, lutava com as marcas que o tempo, de forma inexorável imprime nas feições de qualquer um. E assim sendo, sem nem se quer dar-se conta, viu-se em frente ao espelho no quarto, se maquiando, buscando tornar mais atraente e rejuvenescido seu rosto já sulcado de leve por algumas rugas.
        Tinha um encontro marcado e queria impressionar o homem com quem flertara alguns dias atrás. Era o primeiro encontro e ansiava por causar uma boa impressão.
        É interessante como as mulheres de forma diversa dos homens temem o processo de envelhecimento, tomadas única e exclusivamente pela vaidade. O desejo de manterem-se estacionadas naqueles dias de juventude, em que na certa, se consideravam capazes de conquistar não só o rapaz que amam, mas todos os rapazes.
        Por longo tempo permaneceu na frente do espelho. Um retoque após o outro. Uma correção aqui, outra acolá. Até que por fim o batom escarlate deslizou pelos lábios e deu-se o feito por concluído.
        Da maquiagem passou aos cabelos e destes para a inevitável incerteza quanto ao vestido ideal. Terminando por decidir-se por um preto que considerou ser não só adequado, como implicar numa certa sensualidade.
        Nenhuma mulher se torna menos virtuosa, ou então despida de recato, devido à vaidade. Esse pecado capital parece antes, não condizer em mácula na alma feminina. Quanto mais vaidosa a mulher, mais possibilidade há de não pecar no rumo oposto. O do mau gosto, o do desmazelo ou  o de cair no ridículo.
        Depois bastou acertar numa sandália condizente com o vestido, brincos, um colar e pronto.
        Alice olhou no relógio e respirou sossegada. Ainda faltava meia hora pelo menos para que a campainha na certa tocasse. Aquele encontro com um homem atraente e, certamente descomprometido, lhe proporcionava imenso prazer. Na verdade ser comprometido ou não, para ela era algo que já principiava a desconsiderar. Na sua idade, já concluíra consigo, que não deveria ser muito seletiva.
        Sabia que permanecia solteira por opção. E prezava sua independência. Possuía um círculo não muito grande de amizade. E no momento, excetuando talvez o fato de já não poder mais gerar um filho, e mesmo incluindo isto, considerava-se uma mulher feliz. A solidão nunca a acometera de forma drástica. Se havia sentimento desta natureza ele era leve e suave como uma brisa marítima.
        De certa forma a alma de Alice ainda passeava pelo jardim da vida numa primavera constante. Houve momentos sem dúvida de dor, tristeza, sofrimento mesmo. Como o retrato que conservava na estante, congelando um momento do passado. Uma relação vivida que insistia em não esquecer. Afinal fora esta a relação mais profunda que viveu. Aquela face junto a sua no retrato era o homem que amara e quisera para si. Eleito por ela para ser aquele com quem dividiria todos os dias de sua vida. Ele teria sido o pai dos filhos que não tivera. Ele seria aquele que teria completado a evanescência de seus sonhos, com o toque viril de sua masculinidade.
        Soou a campainha e Alice apressou-se em abrir a porta. À sua frente, trajado elegantemente com terno e gravata, postava-se um homem já maduro, porém senhor de encantos e na certa, indubitavelmente capaz, de lhe proporcionar momentos de prazer. Liberdade à qual Alice jamais renunciou, a de desfrutar do prazer com o sexo oposto. E o ônus dessa liberdade não lhe pesava. Jamais dera ouvidos a possíveis críticas ou comentários sobre sua condição de mulher solteira. Preferia estar sujeita a comentários alheios, que levar uma vida na certa árida e que a conduziria a caminhos ermos, caso se privasse da companhia íntima com o outro sexo.
        Convidou-o para entrar, propôs-lhe um drink antes de decidirem qual seria o programa para aquele primeiro encontro. Serviram-se de um licor e decidiram-se por um jantar a dois, num ambiente onde pudessem ouvir uma música agradável, a fim de uma conversa tranqüila. Ter uma oportunidade de se conhecerem melhor. Uma atmosfera romântica já principiava a envolver ambos.
        - Pegaremos um táxi, e encontraremos um lugar adequado – disse ele.
        Alice concordou e deixaram o apartamento. Braços dados, olhares furtivos. Alice procurando disfarçar o entusiasmo de uma mulher galanteada.
        Ele sem dúvida era um homem requintado, pois escolheu um restaurante refinado, com música ambiente e um bom cardápio.
        Após o jantar veio a proposta:
        - Que tal passarmos esta noite juntos?
        Ela não colocou obstáculo. Ao contrário mostrou-se receptiva e meiga ao convite do companheiro. Disse somente:
        - Prefiro que não seja em meu apartamento.
         -Não há problema, iremos para algum hotel – retrucou o parceiro.
        E a noite transcorreu como ela de certa forma  previra. Houve sexo e carinho mútuo. Ele adormeceu a seu lado. E ela permaneceu longo tempo acordada a vigiar-lhe o sono, e a agradecer a Deus mais uma oportunidade de usufruir do prazer, de sentir-se amada, de ter a seu lado um homem que a saciara num enleio mútuo de carícias. Explorando seu corpo de mulher já madura.
        Na manhã seguinte, ao despertarem, trocaram um olhar terno de amantes saciados. E se não fosse a idade já um pouco avançada de ambos, talvez principiassem em trocar juras de amor eterno.
        Não, ela mesma já descartara esta prerrogativa, e sentia alívio em não ouvir nada além de: “Como foi bom, realmente deveríamos buscar desfrutar outras noites como essa”.
        Separaram-se na saída do hotel. Ele beijou-lhe de leve os lábios, e comentou displicente:
        - Estou atrasado para o trabalho. Espero que tornemos a nos ver em breve.
        - Claro – respondeu ela.
        E cada um seguiu seu caminho: ele para o trabalho, ela de regresso ao apartamento.
        Alice percorreu o caminho de volta olhando a paisagem matutina da cidade através do vidro do táxi que pegara em frente ao hotel. Sentia o corpo lasso, e respirava o ar da manhã como se este invadisse seu corpo e lhe fortificasse os membros aos poucos. “Encherei a casa de flores”, pensou consigo. “Quero o aroma de rosas”.
        Chegou ao apartamento e tratou logo de preparar o café, pois sentia-se faminta.
        Ligou para a floricultura e encomendou as flores. Foi para o quarto, despiu o traje de noite, e mergulhou num daqueles banhos que as mulheres costumam passar tempo indefinido imersas. Banho de sais e muita espuma. “Nada mais relaxante após uma noite de prazer intenso”, pensou ela.
        Após o banho, enrolou-se numa toalha. Foi quando seu coração bateu sobressaltado. Era dezesseis de abril, já ia dando por esquecida a data do falecimento daquele que pousava a seu lado no porta retratos. A tristeza invadiu-lhe a alma e lágrimas marejaram-lhe a vista.
        Recostou-se na cama e, por alguns momentos, fixou o olhar nos raios de sol que atravessavam pela cortina esvoaçante do quarto.
        Em seguida, dirigiu-se ao guarda-roupa, pegou de uma antiga caixa de papelão revestida com papel de presente. Abriu-a trêmula e retirou dela um maço de cartas enroladas numa fita.
        Guardava aquilo consigo há mais de vinte anos. Tomada de estranha sensação não de saudade, mas sim, de revolta consigo própria. Indignada com a fragilidade sua, de seus pensamentos, foi em direção à sala, e corajosamente ateou fogo à lareira.
        Então, uma a uma, as cartas foram lançadas às chamas, consumindo-se e resultando em cinzas.
        O retrato parecia ter vida, quando ao terminar de lançar a última carta, Alice repousou os olhos nele.
        Nesse instante, o telefone toca e tomada de susto, ela pega o fone. Do outro lado da linha, ouve uma voz que se apagaria com o tempo.  Disse-lhe:
        - Olá querida, só estou ligando para mais uma vez dizer que a noite de ontem foi mesmo sensacional. Porém, infelizmente, amanhã me ausento da cidade a negócios e não sei quando volto.
        - Não há problema querido, quem sabe haverá outra oportunidade, do contrário, só tenho a dizer que desfrutei também de uma noite inesquecível. Adeus.
        Pousou o telefone no gancho, e voltando para o quarto, vestiu uma camisola e adormeceu.



FIM

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