domingo, 6 de março de 2016

UMA CRÔNICA

"RITUAL DE UM AMANHECER"





                                                   “Porque não só de pão viverá o homem”

                                                                 Jesus Cristo


          Edgar era um homem envolvente e fascinante. Sua timidez tornava-o mesmo singelo, assim como seus bons modos, transformavam-no em alguém fácil de se querer bem.
          Inescrutável no entanto é o espírito humano, e assim como qualquer indivíduo, Edgar também possuía seus mistérios.
          Todo dia, logo ao amanhecer, Edgar descerrava as cortinas de seu aposento e feria sem temor os olhos com o clarão da manhã. Rosália sua amante, permanecia na cama envolta em seu sono profundo. Em seguida, despia-se ele da cintura para cima e acendia o primeiro cigarro do dia. Barbeava-se e perfumava-se com uma colônia de barbear a seu gosto. Em seguida, abria de forma silenciosa a porta do quarto  para certificar-se de que não acordaria Rosália. Então postava-se diante do espelho, contemplava  atenciosamente o próprio rosto e de forma serena penteava os cabelos. Logo após, despia-se da cintura para baixo e, sem ser conhecedor de seu próprio narcisismo admirava seu corpo esbelto e atlético.
          Só então começava realmente o dia para Edgar, que escolhendo uma roupa que considerava adequada – terno e gravata - , vestia-se e mais uma vez, de forma mansa e felina debruçava-se sobre Rosália, beijava sua face, e a passos mansos se retirava do quarto rumo a seu local de trabalho.
          Lá chegando, saudava a todos com um cordial bom dia, adentrava seu escritório e sentava-se em sua mesa de executivo, homem de negócios que era. Como sempre tomava um café, acendia o segundo cigarro do dia. Amassava a ponta no cinzeiro e anunciava pelo interfone à secretária que iria fazer sua primeira refeição do dia e no máximo, vinte em vinte minutos estaria de volta.
         - Não esqueça de anotar os recados. – Alertava Edgar.
         Em seguida, regressava ao elevador e saindo pelo holl do edifício, dirigia-se ao café mais próximo, onde fazia a primeira refeição do dia.
         Naquela manhã nublada, em que o sol insistia em dourar de leve a paisagem, Edgar deparou-se pela primeira vez com o que mais tarde chamaria, o enigma de sua alma. No caminho de regresso ao edifício, uma mulher de meia idade, com um pano branco de algodão grosso a cobrir a cabeça, trajando andrajos e com uma criança ao regaço, estendeu-lhe a mão e implorou uma esmola.
         Nunca vira aquela senhora naquele local antes e constrangido, pegou as moedas que recebeu de troco no café e depositou nas mãos da mendicante.
         Seguiu adiante, e pontualmente vinte minutos após ter saído, regressava ao escritório.
         O dia transcorreu sem novidade alguma no ambiente de trabalho. Lá pelas cinco horas da tarde, anunciou à secretária que estava de saída e que esta, cumpridora de uma hora a mais de trabalho, não deixasse de anotar os recados do final do dia.
         Deixou o prédio e dirigiu-se para o onde estacionara seu automóvel, quando de súbito voltou-lhe a memória a cena da manhã: a mulher que lhe implorara por uma esmola. Deixara o carro num estacionamento a um quarteirão do prédio. Decido, deu meia volta e foi rumo ao local onde a infortunada se postara pela manhã. No  entanto não havia ninguém lá. “Deve ter tomado o rumo  de sua casa”, concluiu consigo.
         Regressou ao estacionamento e desta vez adentrando o veículo deu volta a chave e partiu rumo ao apartamento onde morava com sua amante.
         Cruzou a primeira avenida, no quarteirão seguinte dobrou à direita e estacou num farol vermelho.
         Seus pensamentos fixos na jovem que o  aguardava, no último drink do dia, na relação sexual rotineira e, logo após o último cigarro, seu sono tranqüilo de homem rico, afortunado na vida, e ainda por cima nobre de alma. Dera inclusive uma esmola.
         O vermelho do farol passou a verde e ele deu partida no veículo, foi quando do nada, uma mulher de mãos dadas à uma criança cortou a frente do veículo com a cabeça coberta por uma pano branco de algodão grosso.
         Não houve tempo de brecar e Edgar atropelou mulher e criança.
         Em desespero saltou do carro pensando poder acudir suas vítimas.
         A criança, fora parar na sarjeta com o impacto do baque do veículo e fendeu o crânio.
         A mulher, jazia estendida na avenida, com as pernas retorcidas, por sobre as quais deslizou os pneus do carro.
         O pano de grosso de algodão branco ensopado em  sangue jazia no asfalto.
         Edgar, dobrando os joelhos, recolheu o tecido e afundando nele o rosto, sufocou ali mesmo suas lágrimas.




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