"RITUAL DE UM AMANHECER"
“Porque não só de pão viverá o homem”
Jesus Cristo
Edgar era um homem envolvente e
fascinante. Sua timidez tornava-o mesmo singelo, assim como seus bons modos,
transformavam-no em alguém fácil de se querer bem.
Inescrutável no entanto é o espírito
humano, e assim como qualquer indivíduo, Edgar também possuía seus mistérios.
Todo dia, logo ao amanhecer, Edgar
descerrava as cortinas de seu aposento e feria sem temor os olhos com o clarão
da manhã. Rosália sua amante, permanecia na cama envolta em seu sono profundo.
Em seguida, despia-se ele da cintura para cima e acendia o primeiro cigarro do
dia. Barbeava-se e perfumava-se com uma colônia de barbear a seu gosto. Em
seguida, abria de forma silenciosa a porta do quarto para certificar-se de que não acordaria
Rosália. Então postava-se diante do espelho, contemplava atenciosamente o próprio rosto e de forma
serena penteava os cabelos. Logo após, despia-se da cintura para baixo e, sem
ser conhecedor de seu próprio narcisismo admirava seu corpo esbelto e atlético.
Só então começava realmente o dia
para Edgar, que escolhendo uma roupa que considerava adequada – terno e gravata
- , vestia-se e mais uma vez, de forma mansa e felina debruçava-se sobre
Rosália, beijava sua face, e a passos mansos se retirava do quarto rumo a seu
local de trabalho.
Lá chegando, saudava a todos com um
cordial bom dia, adentrava seu escritório e sentava-se em sua mesa de executivo,
homem de negócios que era. Como sempre tomava um café, acendia o segundo
cigarro do dia. Amassava a ponta no cinzeiro e anunciava pelo interfone à
secretária que iria fazer sua primeira refeição do dia e no máximo, vinte em
vinte minutos estaria de volta.
- Não esqueça de anotar os recados. –
Alertava Edgar.
Em seguida, regressava ao elevador e
saindo pelo holl do edifício, dirigia-se ao café mais próximo, onde fazia a
primeira refeição do dia.
Naquela manhã nublada, em que o sol
insistia em dourar de leve a paisagem, Edgar deparou-se pela primeira vez com o
que mais tarde chamaria, o enigma de sua alma. No caminho de regresso ao
edifício, uma mulher de meia idade, com um pano branco de algodão grosso a
cobrir a cabeça, trajando andrajos e com uma criança ao regaço, estendeu-lhe a
mão e implorou uma esmola.
Nunca vira aquela senhora naquele
local antes e constrangido, pegou as moedas que recebeu de troco no café e
depositou nas mãos da mendicante.
Seguiu adiante, e pontualmente vinte minutos
após ter saído, regressava ao escritório.
O dia transcorreu sem novidade alguma
no ambiente de trabalho. Lá pelas cinco horas da tarde, anunciou à secretária
que estava de saída e que esta, cumpridora de uma hora a mais de trabalho, não
deixasse de anotar os recados do final do dia.
Deixou o prédio e dirigiu-se para o
onde estacionara seu automóvel, quando de súbito voltou-lhe a memória a cena da
manhã: a mulher que lhe implorara por uma esmola. Deixara o carro num
estacionamento a um quarteirão do prédio. Decido, deu meia volta e foi rumo ao
local onde a infortunada se postara pela manhã. No entanto não havia ninguém lá. “Deve ter
tomado o rumo de sua casa”, concluiu
consigo.
Regressou ao estacionamento e desta
vez adentrando o veículo deu volta a chave e partiu rumo ao apartamento onde
morava com sua amante.
Cruzou a primeira avenida, no
quarteirão seguinte dobrou à direita e estacou num farol vermelho.
Seus pensamentos fixos na jovem que o aguardava, no último drink do dia, na relação
sexual rotineira e, logo após o último cigarro, seu sono tranqüilo de homem
rico, afortunado na vida, e ainda por cima nobre de alma. Dera inclusive uma
esmola.
O vermelho do farol passou a verde e
ele deu partida no veículo, foi quando do nada, uma mulher de mãos dadas à uma
criança cortou a frente do veículo com a cabeça coberta por uma pano branco de
algodão grosso.
Não houve tempo de brecar e Edgar
atropelou mulher e criança.
Em desespero saltou do carro pensando
poder acudir suas vítimas.
A criança, fora parar na sarjeta com o
impacto do baque do veículo e fendeu o crânio.
A mulher, jazia estendida na avenida,
com as pernas retorcidas, por sobre as quais deslizou os pneus do carro.
O pano de grosso de algodão branco
ensopado em sangue jazia no asfalto.
Edgar, dobrando os joelhos, recolheu o
tecido e afundando nele o rosto, sufocou ali mesmo suas lágrimas.
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