sábado, 12 de março de 2016

“GRÃOS DE AREIA AO MAR”



             “EM TODO O TEMPO AMA O AMIGO,
E NA ANGÚSTIA NASCE O IRMÃO.”
                                                                               Provérbio de Salomão



CAPÍTULO  I





            Naquele local distante de qualquer cidade. Onde as ondas da praia batiam forte nos rochedos e o barulho as vezes ensurdecedor do mar provocava medo em qualquer um, morava um jovem de vinte e sete anos de nome Estevão.
            Perdera cedo seus pais e avós maternos, só lhe restava de parente próximo pelo lado materno uma única tia, irmã de sua mãe, a qual há anos não via.
            Isolado naquele local já há certo tempo, de lá quase não saia. Mudara-se há algum tempo logo após a morte de uma irmã de seu pai, que lhe deixou a propriedade em testamento.
            Avesso que sempre foi ao convívio com familiares, não hesitou em abandonar a casa paterna onde possuía alguns parentes, para mudar-se para  aquela casa que herdara e logo num local que considerou, adequado e agradável ao mesmo tempo. Adequado por ser um ermo. Agradável pela proximidade ao mar.
            Assim que o advogado da citada tia transmitiu o comunicado da herança, Estevão deu por encerrado seus estudos. Abandonou um trabalho promissor numa imobiliária e mudou-se.
            Possuía alguma renda em aplicação de herança de seus avôs e pais.   E deu-se por feliz por aquela tia com a qual mantinha pouco contato, premiar-lhe assim com um testamento.
            Não era um homem muito atraente. Embora vaidoso, poucas conquistas amorosas alcançara até então. Ocultava na alma o segredo de sua solidão, e os amigos que possuía, ou as pessoas com as quais convivia tinha por dispensáveis. Tornou-se fácil pois isolar-se naquele ambiente para muitos senão hostil na certa entristecedor.
            Durante os dois primeiros anos de sua estadia ali, praticamente não abandonou a região costeira. Logo de chegada providenciou entrega de alimentos à domicílio e certificou-se se podia postar no correio e dispor de um telefone.
            Tomada estas providências considerou-se no paraíso. Todos os dias percorria longas distâncias próximo ao mar, arriscando-se muitas vezes inclusive a subir nos rochedos. Encontrava prazer ao contemplar as ondas batendo com violência nas pedras abaixo de seus pés. E olhava o sol meio que dourado, forçando-se para manter os olhos abertos, de forma a poder, de quando em quando, seguir o vôo de alguma gaivota.
            Só Deus lá nas alturas conhecia seus pensamentos, e recolhia consigo os sentimentos ainda intensos daquele jovem que adentrava na fase adulta.
            A  cidade mais próxima ficava a cerca de trinta quilômetros, e passado os dois primeiros anos decidiu Estevão adquirir um carro, de forma que pudesse ter acesso a ela sem recorrer ao transporte rodoviário.
            De posse do veículo suas visitas à cidade tornaram-se mais rotineiras, não deixando ele no entanto suas longas caminhadas a beira mar sempre que podia. E isso se dava com freqüência, várias vezes por semana.
            Recebia cartas pelo correio e as respondia de forma sucinta, deixando transparecer nas palavras alegria e satisfação em sua nova vida. Dessa forma, pensava consigo: “evito que venham até mim importunar-me”.
            E na verdade sempre senhor de certo equilíbrio, tanto na saúde quanto nos demais aspectos da vida, não causava preocupação a ninguém.
            Passou-se assim o tempo e sem que Estevão se desse conta, começou a despertar a curiosidade de certas pessoas da cidadezinha próxima a sua casa no mar.
            Como ia com freqüência ao correio pegar sua correspondência, além de suprir-se no mercado de alimentos, surpreendeu-se certo dia com uma funcionária do correio que, displicentemente, soltou seu nome e disse:
            - Estevão, hoje não há correspondência para você... - espere há algumas sim, mas creio que se tratem de propagandas ou coisa do tipo.
            - Grato - respondeu Estevão e retirou-se.
            Intrigado por ouvir seu nome citado assim de forma familiar, entrou no carro e ficou um tempo a pensar consigo próprio: “esta cidade não é tão pequena como parece, poderia sondar e ver o que possui de atrativos. Quem sabe, uma biblioteca, um cinema, ambientes noturnos, enfim locais onde pudesse começar a ter contato com outras pessoas. Afinal, já se passaram dois anos desde que cheguei aqui e não conheço viva alma”.
            E foi envolvido por esses pensamentos que deu partida no veículo rumo à sua casa.
            No caminho continuou seu monólogo íntimo: “Devia ter conversado alguma coisa com a moça do correio, afinal foi tão gentil. Há também o rapaz das entregas esporádicas do mercado, esses tem sido meus únicos contatos desde que cheguei aqui. Demétrius, o nome do rapaz, nome bonito, e bem jovem ainda, talvez não tenha vinte anos. Amanhã regressarei à cidade e passarei no mercado e no correio. Conversarei um pouco com Demétrius, em seguida vou ao correio mesmo que não haja correspondência e pergun- tarei o nome daquela moça. Usarei de algum pretexto para conhecê-la melhor”.
            E assim percorreu os trinta quilômetros que separava a casa da cidade e num piscar de olhos já estava na soleira da porta.
            A casa não possuía muitos cômodos. Era assobradada mas restringia-se a uma sala, a cozinha, um banheiro e uma área de serviços. Isso no andar inferior. O superior possuía dois quartos, dois banheiros sendo, um dentro do quarto que Estevão ocupava, outro no corredor. E mais um cômodo onde Estevão alojava livros os quais lera no passado, além de outros objetos considerados inúteis como: malas de viagem, máquina de escrever, roupas que já não usava, dentre outras coisas. Ah! Sim, havia também o sótão que permanecia para ele um mistério, pois logo que instalara-se, verificou que este não possuía iluminação e tão pouco conseguiu abrir uma das janelas que percebeu dar para o mar. Certo de que só havia velharias e teias de aranha, nunca teve a curiosidade em sondar o que haveria nele.
            O local mais agradável da casa era sua sala de estar, onde conservava os móveis da tia, que embora antigos, considerava de bom gosto. Ali, passava seus fins de tarde a ouvir músicas, beber alguma coisa e vez por outra cochilar antes do pôr-do-sol. Quando então saia para o lado esquerdo da varanda e contemplava o austero astro, quase sempre avermelhado   a declinar no horizonte, desaparecendo no limiar das águas daquele   belo mar.
            Estevão habituou-se com facilidade a idéia de cozinhar e lavar para   si próprio. E vez por outra, não raro acumulavam-se louças na pia e roupas na máquina de lavar.
            Transcorria assim os dias em uma seqüência rotineira de caminhadas pela manhã e contemplação ao alvorecer.
            Naquele dia em especial, ao regressar da cidade, sentiu-se inquieto   e triste, tomado de uma melancolia entorpecedora.
            “Demétrius... bonito nome”, era um dos pensamentos que lhe ocorria. Evitara até este momento transportar-se no tempo e visitar o passado. Mas agora, apesar do isolamento não implicar em solidão, sentiu o coração bater num ritmo diverso, e mesmo contra vontade, os pensamentos insistiam em viajar no tempo, rumo ao passado.
                                      CAPÍTULO II

            Foi tomado por este estado de extrema nostalgia que ele ficou paralisado por horas numa  poltrona da sala. Quando deu-se conta, o sol já estava a se por.
            Levantou-se e, com a mente turvada pelas recordações, saiu para a varanda como sempre o fazia e foi contemplar o astro rei a declinar no horizonte.
            Mas algo em seu íntimo havia mudado. E do estado tranqüilo e sóbrio que conduzira seus dias até então, sentiu reacender como chama ardente a memória do que deixara para trás.
            A noite chegou e embora não senti-se fome, obrigou-se a comer alguma coisa. Pôs uma música, julgando que assim seus sentimentos em verdadeira erupção se acalmassem. Mas deu-se o contrário, ao invés disso,   eles transbordaram feito lava dum vulcão. E Estevão chorou, pranteou mesmo como talvez nunca houvesse pranteado antes.
            Ao recuperar parte de suas forças, pois por longo tempo as lágrimas lhe escorreram incessantes pelo rosto, subiu as escadas rumo ao quarto e contemplou-se no espelho. Viu-se abatido no semblante e levou as mãos trêmulas ao rosto. Jamais imaginara que haveria de reincidir naquilo que ora lhe transpassava o peito. Não pelo menos desde o dia em que chegara àquele lugar onde  julgara encontraria paz para seus tormentos.
            E atirou-se na cama temeroso, prevendo insônias vividas tempos atrás. Fixou o olhar no teto do qual pendia um lustre antiquado; repleto de pedacinhos de vidro compactos e coloridos formando mosaicos variados.  Regressou à sala, tomou do toca discos que instalara lá e voltou para o quarto.
            “A música”, pensou consigo, “a música há de me ser por acalanto”. Escolheu um clássico a esmo e pôs para tocar. Porém, deu-se conta de que o silêncio era mais condizente com seu estado de espírito. E então como a suave brisa marítima que varria aquele paraíso seu, suas recordações foram ressuscitando uma após outra, em sólida e dolorosa procissão de imagens.
            A princípio veio-lhe a figura  daquela bela jovem com quem noivara embora sem amá-la, para em seguida surgir o semblante fatídico do amigo que há anos não via e pelo qual seu coração queimou em brasa; logo cedo saído da adolescência.
            Recordou a forma como tentou evitá-lo temendo não ter forças de ocultar dele seus sentimentos. Mas, este foi persistente na amizade, e quando Estevão tentou um rompimento com o amigo, dele se afastando de forma a não revê-lo jamais, o outro obteve uma forma de contatá-lo conduzindo-o sem querer  a confessar o que sentia.
            O tempo havia parado e ele ia adiante em suas recordações. Lembrou-se da forma abrupta como ambos, ele e o amigo, se separaram. Este pondo a mão em sua perna, levantou-se do banco da praça onde estavam sentados e disse simplesmente: “Não me procure nunca mais”.
            Era noite e Estevão então por sua vez, deixou a praça e caminhou decidido rumo a uma ponte da qual pretendia precipitar-se. O fato não consumou-se, pelo destino, que providenciou para que ele desse de encontro com uma amiga, que por acaso fazia o mesmo caminho.
            Passou a mão pelos cabelos, como a querer espantar aquela seqüencia de pensamentos que insistiam em regressar em sua mente.
            Desligou o lustre e recostou-se na cama. Seus olhos ainda ardiam devido ao pranto. Como haveria agora de regressar ao sossego que desfrutara nestes últimos dois anos. Naquele lugar que era para ele tão acolhedor?
            Ouvia ao longe o bramir das ondas nas pedras. O mais era silêncio. O relógio antigo de pêndulo da sala lá embaixo, cadenciava o passar das horas. Olhou para o despertador e assustou-se. Já passava da meia-noite. Jantara mal e tão pouco sentia sono. Decidiu por descer para a sala de estar. Ligou a televisão mas não encontrou nela nada que lhe fixasse a atenção. Foi  para a cozinha, fez um sanduíche, comeu, tomou um copo de leite e regressou para o quarto.
            Era inverno e portanto, nem sequer podia cogitar em uma caminhada próximo ao mar devido ao frio intenso.
            Antes de instalar-se naquele lugar afastado de qualquer centro urbano, levava uma vida pouco agitada, porém quando lhe vinha a insônia podia recorrer  em sair para algum lugar. Como um possível bar que varasse a noite aberto.  Agora se via em aflição, pois além da insônia, a solidão lhe pegou de sobressalto e sentiu-se enjaulado naquele mausoléu que herdara.
            Regressou para o quarto e dessa vez ligou o rádio num volume baixo, e estendeu-se na cama. “Por sorte tomei um banho pela manhã”, pensou consigo e graças a Deus pouco tempo depois adormeceu.
                                   CAPÍTULO III
            Despertou tarde. Verificou as horas no relógio. Já passava das onze da manhã.  Decidiu-se por uma refeição que lhe permitisse comer novamente lá pelo final da tarde. Sendo assim preparou um bom prato. Na verdade, estava faminto. Após a refeição preparou um café e em seguida regressou ao quarto para pegar seu cigarro. Deu-se conta então que fumara o último   no dia anterior.
            “Isso é mesmo uma droga”, disse para si mesmo, “agora terei que ir até a cidade”. Pegou o carro extremamente irritado, pois seus planos era passear pela praia uma vez que apesar do frio o sol brilhava, e o mar constantemente agitado daquela região, encantava-o. E esperava extrair do passeio um refrigério para o tormento que vivera até altas horas da noite anterior.
            “Talvez seja melhor assim”, replicou consigo mesmo acrescentando,
“aproveito para bater um papo com o rapaz do mercado; passo pelo correio e pergunto o nome daquela moça intrigante que soltou meu nome ao acaso, como se houvesse alguma intimidade entre nós”.
            Chegando à cidade dirigiu-se direto para o mercado. Lá se garantiria com cigarros por longo espaço de tempo. Estacionou o carro e adentrando o estabelecimento deu de cara com Demétrius o entregador, que distraidamente empilhava latas numa prateleira.
            Sentiu então um calafrio a percorrer-lhe a espinha. Não havia atentado ainda para a beleza do rapaz. Não muito alto, cabelos negros curtos e fartos, uma face jovial e arredondada na qual um par de olhos castanhos, que não expressavam alegria ou tristeza, mas se conjugavam perfeitamente bem com o nariz  e a face bronzeada. Seu físico atlético e robusto de rapaz que mal deveria ter ultrapassado os dezoito anos também o fascinaram.
            Sentiu como se as palavras fossem lhe travar na garganta, no entanto balbuciou procurando disfarçar seu nervosismo:
            - Demétrius, poderia me ver dois pacotes de cigarros?
            - Pois não Estevão, - respondeu o rapaz, acrescentando - se houvesse telefonado eu teria levo até sua casa.
            - Imagine, fazer você ir tão longe devido a dois pacotes de cigarros. Mas, mesmo assim, obrigado.
            Deu as costas e retirou-se apressado. “Meu Deus, pensou ele, o que é isso agora que me acomete? Imaginei que jamais regressaria esse sentimento remoto que a alto custo deixei enterrado no passado”.
            Pegou do carro e foi para o correio. Logo ao entrar viu a moça que o atendera da última vez próxima ao balcão.
            - Olá! - exclamou ele.
            - Olá! Estevão - disse a moça, com um largo sorriso estampado no rosto – só um momento - acrescentou.
            Verificou a caixa-postal e voltou com a correspondência.
            - Desta vez há cartas.
            - Muito obrigado -  disse Estevão - indagando- como você se chama mesmo?
            - Noêmia.
            - Fico feliz em conhecer uma jovem tão educada e que identifica seus clientes com facilidade pelo nome.
            - É que seu nome me agrada. Soa muito bonito. Estevão... pronunciou a moça sem retirar dos lábios o sorriso.
            - Conhece o rapaz Demétrius do mercado Noêmia?
            - Claro disse ela, numa cidade pequena como esta, a gente sempre conhece quase todo mundo.
            - Poderíamos combinar de sairmos juntos num final de semana qualquer - acrescentou Estevão, de forma natural, mal se dando conta do propósito que o conduzia a propor aquele encontro.
            - Boa idéia - disse Noêmia - gostaria inclusive que nos honrasse com uma visita lá em casa. Na verdade, já faz algum tempo que comentei com meus pais que chegara um rapaz novo na cidade e que praticamente toda semana recebe inúmeras correspondências. Eles ficaram curiosos em saber de onde você é, qual o motivo de sua mudança para cá , e outros detalhes. Estou certa de que ficariam muito felizes em conhecê-lo.
            - Pois bem, aqui está meu telefone. Convide Demétrius também, ele aceitando me comunique e marcamos um encontro em sua casa.
            - Ótimo, disse a moça.
            - Até mais - acrescentou Estevão retirando-se.
            Ao entrar no carro, deu-se ele conta de que suas mãos transpiravam. Não compreendia como fora capaz de tudo aquilo. Indagar o nome da moça, e ainda por cima propor o encontro dos três, ele, ela e o rapaz que o deixara atordoado.
            Acendeu um cigarro, deu partida no carro e pegou a estrada de volta para casa.
                                   CAPITULO IV
            Passaram-se uns quinze dias ou mais, e o telefone como sempre permanecia silencioso. Estevão cogitou consigo que na certa, talvez a moça houvesse simplesmente esquecido da proposta que ele fizera. Ou do convite em si. Fosse por um motivo ou por outro, ele decidiu-se por não pensar mais nisso. Ademais, teria que regressar ao correio no mês seguinte e então tudo se esclareceria.
            Enovelado agora em persistentes pensamentos que insistiam em atormentá-lo, os passeios pelo orla já não se apresentavam tão prazerosos como antes. A paisagem ainda o encantava, bem como o mar agitado e as ondas barulhentas lhe serviam de carta forma como acalanto. O inverno tornara-se mais intenso, e nos três últimos dias, uma chuva fina e persistente caia quase que constantemente, e o sol praticamente não saia de trás das   nuvens.
            Foram três, quase quatro dias de um acinzentado e garoa fina. Porém ele se agasalhava e passava grande parte do dia vagando a beira mar. Não foram poucas as vezes que se pegou relembrando a figura do belo Demétrius. Tentava afastar de si a memória do jovem, mas como uma miragem que emergia do nada, surgia aquele par de olhos castanhos a brilhar naquela face jovial. E então Estevão ansiava que chegasse logo o mês seguinte, quando teria que necessariamente regressar à cidade, para pegar a correspondência e encomendar suas compras no mercado.
            Passado aqueles dias instáveis, finalmente o sol tornou a brilhar firme e Estevão respirou com mais alívio.
            As noites tornaram-se longas. Ia dormir tarde e acordava sempre próximo à hora do almoço.
            Tudo agora havia perdido o encanto primeiro de quando se mudou para aquele local. A casa antiga, com seus móveis antiquados, conjugada ao isolamento marítimo e a distância de trinta quilômetros de qualquer alma viva, entorpecia Estevão de uma angústia insuportável.
            Ele tentava a todo custo desvincular-se dos sentimentos que o obsediavam, e debatia-se com o que já sabia fatal: como na adolescência, na certa não conseguiria passar indiferente ao que aquele jovem encantador, funcionário de um pequeno mercado despertara nele.
            “Talvez, se ao menos eu soubesse nadar”, cogitava, poderia adquirir um barco. Distrair-me pescando”. Outras vezes pegava-se amaldiçoando o telefone que se mantinha silencioso.
            Recusava-se a confessar a si próprio, que caíra numa armadilha. Considerava o fato de ter optado por aquele isolamento, e então legava a si mesmo a culpa de sua solidão.
            Arrogante e orgulhoso como sempre fora, não admitia a possibilidade de ligar para algum parente ou conhecido que deixara para trás. Começou inclusive a acumular cartas que lia sem pretensão de responder a nenhuma. “O que diria para aqueles que deixei para trás. Que estou arrependido do que afirmei ser minha felicidade? Do que frisei com entusiasmo chamando de paraíso? Não, isso não, de forma alguma”; falava ele em voz alta para o vazio.
            De certa forma passou a agir por pura obstinação. Amargando as emoções que por vezes as recordações de seu passado lhe traziam. Rejeitava aceitar lá em seu íntimo que era o próprio algoz de si mesmo.
            Sempre fora assim, era de sua natureza não admitir que evitava por  compulsão partilhar de possíveis alegrias alheias as suas. Obstinado, sempre engolfou-se em um  mar de pequenas vaidades, prazeres efêmeros que lhe escapavam pelos dedos, nunca se dando a oportunidade de revelar-se de forma autêntica a ninguém.
            E assim se passaram quinze dias de verdadeiro inferno onde outrora se estabelecera o paraíso.



                                   CAPITULO V



            Era agosto. O frio ainda persistia, e no terceiro dia do mês Estevão pegou do carro e partiu para a cidade.
            “Vou primeiro ao correio depois ao mercado”, decidiu ele. Ia estrada afora aborrecido e cansado. Fora mais de quinze dias de noites mal dormidas e dias repletos de tédio. Além do que a angústia persistia, contrastando  com a expectativa de rever Demétrius.
            Não chegara a dirigir cinco quilômetros, quando deu com um veículo parado à beira da estrada. Um homem de seus trinta e poucos anos sinalizava pedindo que parasse o carro.  “Ainda mais essa”, murmurou Estevão encostando o seu carro próximo ao do outro.
            - O que se passa amigo? - Indagou ele.
            - Desculpe incomodá-lo, já faz tempo que sinalizo aqui e você é o primeiro que pára. Creio que houve algum problema com a bateria ou o motor,   não sei. Poderia me dar uma carona até a cidade.
            - Claro- disse Estevão- entre.
            - Me chamo Marcos, resido aqui na cidade, não sei que diabos foi acontecer com meu carro, logo hoje que arrisquei ir pescar. Espero que não esteja incomodando.
            - De forma alguma - retrucou secamente Estevão- eu estava mesmo a caminho da cidade.
            - E então, você está de passagem, viajando para algum lugar, ou mora por aqui? - Indagou o estranho.
            - Moro aqui perto, numa casa junto à praia.
            - Olhe amigo, sinto muito, peço desculpas mais uma vez por estar incomodando. Aquele carro é assim, embora não seja uma lata velha, vive a me dar problemas.
            - Compreendo -  acrescentou Estevão, sem deixar transparecer a irritação com o palavreado do outro. – Onde devo deixá-lo?
            - Próximo ao correio está ótimo, ou melhor, no posto, pouco antes do correio, se está indo para a cidade vai passar por lá, não é mesmo?
            - Sim claro, no posto.
            Rodaram uns quinze minutos. Estevão satisfeito pelo outro ter se calado, pois não estava a fim de trocar palavra com ninguém. Marcos porém parecia não conseguir manter-se em silêncio, e acrescentou:
            - Como se chama mesmo?
            - Estevão.
            - Pois é Estevão, mora aqui faz muito tempo ou mudou-se recentemente? Não me lembro de tê-lo visto antes na cidade. Você sabe como é, cidade pequena, a maioria das pessoas findam se cruzando e sem querer a gente termina decorando o rosto um do outro.
            - Faz dois anos que me mudei. Não venho muito à cidade. No geral uma vez por mês, para fazer compras e pegar minha correspondência.
            Marcos era do tipo dado à indiscrição e portanto foi adiante na conversa, sem importar-se se incomodava ou não aquele sujeito que lhe salvara de uma bela caminhada a pé de volta à cidade.
            “Enfim o posto de gasolina”, pensou consigo Estevão parando o carro.
            - Aqui está bem? - Indagou este.
            - Está ótimo, e mais uma vez desculpe se o incomodei.
            - Não seja por isso. Até mais.
            - Até! -  exclamou o estranho.
            Estevão deu-se por satisfeito ao ver-se livre do sujeito e seguiu rumo ao correio. Chegando lá, mais uma vez foi logo avistando Noêmia atrás do balcão. Aproximou-se e aguardou que ela percebesse sua presença.
            Estava mesmo esgotado. Sem forças para nada. Não atinava como conseguira dirigir até a cidade, e ainda por cima com aquele sujeito a despejar todo aquele palavreado em seus ouvidos.
            Passados alguns instantes, Noêmia deu-se conta dele no balcão e apressou-se em atendê-lo.
            - Estevão, tentei ligar três vezes ao final do expediente nesses últimos dias mas ninguém atendia ao telefone. Como não há secretária eletrônica não pude deixar recado.
            - Sinto muito, costumo passear pela praia ao entardecer e na certa quando o telefone tocou eu não estava em casa. Preciso mesmo de providenciar uma secretária eletrônica.
            - Espere um momento que vou pegar sua correspondência, disse Noêmia.
            Ela se afastou. Ele por sua vez foi até a porta respirar um pouco de ar puro. O correio não dispunha de ar condicionado e senti-se sufocado. Havia filas para postagem e nunca se dera conta das inúmeras pessoas   que por vezes super lotavam o pequeno prédio do correio.
            Noêmia regressou  e ele prontamente dirigiu-se ao balcão, mal passou-lhe a correspondência ele a inquiriu:
            - E então, conseguiu combinar alguma coisa com o rapaz, o Demétrius do mercado?
            - Ah! Sim, ele achou ótima a idéia de irmos até minha casa para que você conheça meus pais. E então podemos combinar algum passeio pela cidade. Afinal como disse ele, ambos sabemos que você não conhece nada
por aqui. Você gostará de conhecer alguns locais turísticos de nossa pequena cidade. Há um pequeno museu em memória aos escravos, além de alguns pesqueiros pelos  arredores, bem como uma casa noturna simples, onde se apresenta um artista ou outro. Talvez você goste.
            - Fico agradecido Noêmia. Vou agora ao mercado e falo com ele pessoalmente. E desta vez combinamos um dia e um horário para que você me ligue.
            - Está bem, só um momento.
            Noêmia então foi até o telefone e voltou alguns minutos depois.
            - Pronto, acabo de conversar com minha mãe, e ela disse que você e Demétrius estão convidados a almoçar conosco no segundo domingo do mês. Passando este domingo, o próximo.
            - Ótimo, disse Estevão, vou passar o convite para o Demétrius pessoalmente, e caso ele não tenha nenhum compromisso ficamos assim combinados.
            - Ok! Até mais então Estevão. Aguardo-o em minha casa. Demétrius sabe onde fica, combine com ele e esteja lá no domingo.
            - Está certo Noêmia, eu agradeço a oportunidade de conhecer sua família.
            - Ora Estevão, eu é que me sinto feliz por você aceitar o convite. Até mais então.
            - Até! - disse Estevão e retirou-se, não vendo a hora de passar o recado para Demétrius e regressar para sua casa, a fim de recuperar as energias.
            Pressentia que uma vez certificado de que poderia desfrutar da companhia de Demétrius em breve. Cessaria então aquela ansiedade  que lhe perturbara  por dias. E então encontraria novamente a paz em seu pseudo-paraiso.
            Chegando ao mercado, perguntou por Demétrius a um dos funcionários, e não demorou muito para que Estevão se visse mais uma vez perante aquele jovem que lhe atribulara tanto o espírito nos últimos dias. “Ele é encantador mesmo, parece mais um presente dos deuses”, disse de si para si.
            Atentando mais uma vez, não só para o rosto bem como para a compleição física do rapaz, que por hábito trazia um avental à cintura e, apesar do frio, as mangas da camisa arregaçada, com alguns botões abertos deixando amostra parte do peito.
            - Como tem passado Demétrius? Vim saber se minhas compras do mês já foram selecionadas como sempre.
            - Estou bem Estevão. Já separei tudo, julgava mesmo que você viria por estes dias no início do mês como sempre.   
            - Demétrius conhece Noêmia a funcionária do correio não é mesmo?
            - Sim, ela me disse do convite para irmos à sua casa eu e você, no entanto parece que não conseguiu se comunicar, o telefone não atendia.
            - É verdade, ela me ligou por três vezes no final do dia, e como costumo passear pela praia neste horário, na certa não ouvi o telefone. Vou tratar de providenciar uma secretária eletrônica.
            - Isso é bom Estevão. Vai levar as compras agora ou prefere que sejam entregues lá?
            - Mande entregar lá por favor, não hoje. Amanhã se possível, mais uma coisa, Noêmia combinou de nos encontrarmos em sua casa, passado este domingo no próximo. Sua mãe estará nos aguardando disse ele. Você por acaso tem algum compromisso?
            - Não, e fico contente em ter a oportunidade de conhecer os pais de Noêmia. Ela é filha única o senhor sabia?
            - Não.
            - Pois é, ela já me convidou para ir até lá, mas como sabe trabalho muito aqui no mercado. E por vezes até aos domingos para conferir os estoques. Mas garanto que estarei livre na dia combinado.
            - Então ficamos assim ajustados, passo por aqui no domingo lhe pego por volta das onze horas e vamos para lá. Você sabe onde ela mora não é mesmo?
            - Sim sei, não se preocupe. Estarei aguardando aqui no domingo no horário combinado.
            Pela primeira vez Estevão estendeu a mão para o rapaz, que retribuiu   o cumprimento. E trocaram assim o primeiro aperto de mão.
            Estevão retirou-se e mal atravessou a porta, sentiu como se pisasse em nuvens. O contato firme daquela troca de aperto de mãos confirmou mais ainda o que ele já pressentia, deveras o rapaz se apossara de seu coração.



                                             CAPÍTULO VI



            Regressou Estevão para seu refúgio junto ao mar. Percorreu o caminho o mais rápido que pode. Não via a hora de chegar em casa, comer alguma coisa, e estender-se no sofá da sala e procurar dormir um pouco. O frio na certa contribuiria para que após uma boa refeição, um café e um cigarro, pelo menos repousasse. Quem sabe vendo algum filme na televisão.
            Como previra, mal se alojou no sofá e, aconchegando-se com uma manta e um cobertor adormeceu com a T.V. ligada. Despertou próximo às seis da tarde. O sol já desaparecia no horizonte. Espreguiçou-se e foi até a varanda como sempre. O frio era cortante, mas seu pijama e o sobre-tudo tornava-o suportável. Esteve alguns instantes a contemplar os últimos raios de sol e em seguida voltou para dentro.
            A dor em seu peito amenizara, tinha certeza agora que em breve estaria na companhia de Demétrius, e por um domingo inteiro. Respirou aliviado e pensou de imediato: “Diabos, o que poderia eu levar como presente ou recordação para o rapaz, sem que este tomasse isso como alguma afetação de minha parte”. Subiu então ao quarto onde entulhara livros e outros objetos diversos e pôs-se a vasculhar alguma coisa que fosse adequada. Lembrou-se então de um livro de bela encadernação que ganhara de uma amiga tempos atrás e que narrava uma estória singular. Na verdade não era bem uma estória, era mais um livro de meditações, pensamentos ou verdadeiros provérbios de um escritor pouco conhecido.
            Porém hesitou e refletiu: “Não fica bem presentear o rapaz e deixar Noêmia sem  ser presenteada. Ou os dois, ou então ela, ou nenhum dos dois”, conclui num raciocínio lógico.
            Era característica de Estevão a discrição e o bom gosto. Bem como princípios de etiqueta.
            Tornou a vasculhar o aposento surpreendendo-se com um  baú do qual não se dera conta. “Deveria pertencer a minha tia”, pensou consigo. Com facilidade conseguiu remover uma pequena trava de ferro que o lacrava. Havia inúmeros objetos nele. Livros os quais as páginas principiavam a se esfarelar devido a traças, lenços femininos coloridos com flores, na certa de usar no pescoço, algumas fotos antigas em pequenas molduras dentre outras coisas. Foi quando se deu o achado. No fundo do velho baú, havia uma pequena caixa cravada de enfeites de metal em forma de flores e pedrinhas coloridas no centro. “Excelente!”, exclamou, “perfeito para Noêmia”.
            Feliz com os dois achados, regressou para a sala de estar, pegou o telefone e ligou para uma loja de variedades na cidade, encomendando papéis de presente para serem entregues no mercado, e enviados com a conta para seu endereço.
            Colocou um disco na vitrola, acendeu um cigarro, serviu-se de uma bebida e divagou deliciado na perspectiva de que as próximas duas semanas passariam num piscar de olhos. Em breve chegaria o domingo tão almejado.
            Ansiava ele agora pela chegada da primavera. Quando o frio amenizaria e na certa as caminhadas a beira mar se tornariam mais prazerosas.
            O relógio de pêndulo acusou as horas, já passava das nove, quase dez.  Foi para cozinha preparou alguma coisa para o jantar. Após a refeição fumou outro cigarro e recolheu-se em seus aposentos. Tomou um banho e em seguida foi para a cama e para surpresa sua logo adormeceu, caindo num sono profundo. Às nove horas despertou e permaneceu na cama até mais tarde.
            Surpreendido percebeu que a angústia que por dias lhe oprimira o peito cessara. Bem como sobreveio um estado de entorpecimento, porém diverso do que vivera nos últimos dias. Sentia-se agora tomado por uma sensação de alegria incontida, sem muita excitação. Passara a tempestade e agora era como se navegasse em águas mansas e tranqüilas. O vislumbre do domingo que desfrutaria na companhia do rapaz que lhe arrebatara a paz e o fez regressar no passado, lá bem distante, quando apaixonara-se pelo amigo na adolescência, não se apresentava como uma ameaça. Mas antes como possibilidade de, quem sabe talvez desta vez, ver realizar-se em sua vida um sonho que por anos trazia consigo num recôndito de sua alma.
            Os dias transcorreram imperturbáveis. Manteve-se Estevão naquele seu estado de expectativa, porém livre de excessiva comoção. Antes, distraia-se mais uma vez em seus passeios ao entardecer. Bem como desenterrou alguns livros que lera anos atrás.
            Assim sendo, as duas semanas que o separavam do ansiado encontro transcorreram de forma tranqüila. Lia, ouvia música, passeava a beira mar, enfim não houve tempo para que seus pensamentos pudessem lançar dardos que ferissem suas expectativas de gozar da companhia daquele que, no momento preencheu sua eterna carência; a qual não confessava nem a si próprio.



                                          CAPITULO VII


   
     
            Chegou o tão esperado domingo. Estevão despertou cedo, escolheu um traje que considerou adequado para a ocasião. Tomou um banho, vestiu-se, fez a refeição da manhã, pegou o carro e partiu rumo à cidade. Encontraria Demétrius no mercado e de lá seguiriam para a casa de Noêmia. Na estrada acendeu um cigarro, ligou o rádio do carro e seus pensamentos vagaram com o vento. Tão velozes ou quase mais, que o veículo pela rodovia.
            Por volta das dez horas já estava na cidade. Como o encontro era às onze, estacionou o carro na praça central e foi até uma cafeteria. Pediu um café, em seguida sentou-se num banco solitário para passar o tempo. Embora fizesse frio o sol brilhava e o céu era de um azul magnífico.
            “Feliz, estou deveras feliz”, pensou Estevão em voz alta. Principiou inclusive a murmurar uma música que lhe veio a mente. Olhou para o relógio, já se aproximava das onze. Pegou o carro e dirigiu-se para o mercado avistando de longe Demétrius que já lá estava a aguardá-lo.
            Estacionou próximo ao rapaz que entrou no veículo e estendendo-lhe a mão disse um bom dia. Estevão retribuiu o aperto de mão e partiram para a casa de Noêmia.
            Permaneceram algum tempo em silêncio e então Estevão interrogou Demétrius:
            - Já estamos perto?
            - Basta entrar a direita e pode estacionar na segunda quadra – acrescentou este.
            Estevão estacionou, era o número cinqüenta e sete. Uma casa simples, de pintura discreta e um pequeno jardim junto ao portão de entrada.
            - É aqui mesmo devem estar nos aguardando -  disse Demétrius.
            Desceram do carro e Estevão tocou a campainha. Noêmia veio recebê-los festiva no portão.
            - Vamos entrem, papai e mamãe estão aguardando vocês - disse a moça.
            Os dois atravessaram o portão e seguindo Noêmia entraram na casa.
            Demétrius já era conhecido. Noêmia então adiantou-se e pegando Estevão pelo braço, conduziu-o ao centro da sala dizendo:
            - Mamãe, papai, este é Estevão de quem lhes falei.
            Em seguida, dirigindo-se a um homem sentado numa poltrona próxima aos pais acrescentou:
            - Estevão, este aqui é Marcos, meu namorado.
            Estevão teve um sobressalto, ali na sua frente estava aquele desagradável sujeito ao qual dera carona dias atrás. Recuperando-se do impacto, estendeu a mão e cumprimentou o fulano.
            Este por sua vez esbravejou:
            - Ora vejam só se não é o mesmo que há poucos dias atrás me socorreu na estrada, quando o maldito do meu carro pifou. 
            - Como está você? - Indagou Estevão.
            - É um prazer recebê-lo na casa de meus sogros. E você Demétrius como tem passado? Acrescentou Marcos.
            - Eu estou bem Marcos, obrigado. - Respondeu o rapaz.
            Estevão percebeu nas feições do jovem um certo desagrado.
            Noêmia aceitara a proposta de namoro de Marcos a poucos dias. Demétrius não imaginara encontrar ali aquele homem que era seu conhecido por fazer compras no mercado, bem como pelo falatório que corria solto pela cidade a respeito de ser dado a bajular inúmeras mulheres, e segundo alguns dado também  a companhias e hábitos estranhos para os habitantes da pacata cidade.
            Dona Gertrudes, mãe de Noêmia mostrou-se solicita e por natureza expansiva, encantou Estevão com tiradas pitorescas sobre um homem elegante, vindo na certa de alguma cidade bem mais desenvolvida que aquela e resolveu enfiar-se naquele fim de mundo. Estevão reparou que próximo a seu lugar no sofá havia uma revista de palavras cruzadas , bem como um romance o qual não consegui ler o título. Dona Gertrudes ao perceber que seu olhar dirigiu-se ao livro comentou:
            - É algo assim no estilo melodramático de Best Sellers americanos, como As Vinhas da Ira ou Os Capitães e os Reis, não sei se lhe agradaria?
            - Estevão respondeu:
            - Na certa que sim.
            Já seu Miguel, o pai de Noêmia, mostrou-se reservado e restringiu-se  a cumprimentar Estevão e indicar-lhe um lugar numa outra poltrona, de frente para a de Marcos.
            Demétrius acomodou-se no sofá junto a Noêmia e seus pais.
            Graças ao bom humor de dona Gertrudes, tudo transcorreu de forma que das onze passou para o meio dia e a dona da casa anunciou que precisava ir para a cozinha caso contrário, o almoço não sairia antes das duas horas.
            Com sua saída Marcos dirigiu-se a Estevão e atropelou com perguntas de toda ordem. De onde vinha, se era casado ou separado, se tinha filhos, o que era feito de sua família. Perguntas as quais Estevão respondia com evasivas. não mentindo, porém por outro lado, tentando manter o mais que podia sua discrição.
            O almoço foi servido todos comeram em silêncio. “Graças a Deus”, pensou consigo Estevão, “ainda bem que esse tal de Marcos respeita ao menos a hora das refeições.
            Evitava o máximo que podia olhar para Demétrius. Que não pareceu de forma alguma incomodado com a presença de Marcos, a não ser quando da chegada.
            Após o almoço, dona Gertrudes serviu um café e Estevão pediu licença para fumar seu cigarro lá fora no jardim.
            Voltou e foi logo participando que precisava regressar a sua casa, para espanto de Noêmia, que adiantando-se em sua direção comentou excitada:
            - Mas Estevão, e o passeio que combinamos com Demétrius? Marcos achou ótima a idéia e não se importa de irmos todos juntos.
            - Sinto muito Noêmia,- retrucou Estevão - Deveras preciso ir; aguardo um telefonema para esta tarde portanto fica para um outro dia o passeio. E creio também que eu e Demétrius só haveríamos de impossibilitar que você e Marcos desfrutem dessa bela tarde de domingo. E acrescentando, dirigiu-se a Demétrius – Não é mesmo Demétrius?
            - Concordo Estevão - e dirigindo-se a Noêmia disse, - Eu também não me Importo de cancelar o passeio.
            - Bem, se é assim, nada posso fazer? – O que acha Marcos?
            - Ora Noêmia, haverá outras oportunidades. Já que cancelam o passeio concordo que desfrutemos nós dessa bela tarde de domingo.
            Estevão despediu-se de todos e para sua surpresa, Demétrius fez o mesmo, dizendo que o acompanharia, queria uma carona para casa.



                                      CAPITULO VIII
            
            
            Estevão deu carona para Demétrius até sua casa e em seguida seguiu estrada a fora rumo a seu retiro a beira mar. Deixara a casa de Noêmia por volta das três horas e lá pelas cinco já estava de volta novamente com a alma conturbada para sua morada. Fez o caminho de regresso sentindo que a cada quilômetro que avançava pela rodovia, sua angústia regressava. Inundado  de tristeza, com sombras em sua alma. Foi nesse estado de profundo abatimento que deu volta a chave e abriu a porta da sala de estar. Fechando-a atrás de si  e lançando-se no sofá.
            A frustração o dominava, tudo tinha saído errado. Aquele maldito Marcos tinha que surgir como um espectro  assombroso, afastando de seu caminho a possibilidade de realizar o que com tanta ânsia aguardara.
            Fora por água abaixo a oportunidade de desfrutar da tão ansiada e agradável companhia de Demétrius. Os presentes que levara consigo, trouxe-os de volta e deixou no banco traseiro do carro.
             E mais uma vez seus pensamentos se enovelaram. E mais uma vez sentiu como  todo seu ser, despencasse abismo abaixo. Indo rumo ao vale tenebroso da solidão e da melancolia mórbida, que o inundara dias atrás.
            Quando haveria agora outra oportunidade de reencontrar com o jovem e permanecer a seu lado, ainda que acompanhado por Noêmia.
            Era fato que não pretendia Estevão investir junto ao rapaz com declarações de sentimentos de amizade profunda, ou coisa do gênero. De forma alguma, não era isso que trazia em mente. Queria sim era a oportunidade de aproximando-se dele, ganhar sua estima e confiança, para que pudessem compartilhar momentos juntos.
            Estevão haveria de convidá-lo a adentrar na intimidade de sua casa, dividir com ele seus gostos pela música, por livros quem sabe? Descobriria seus gostos e desejos e tentaria fazer com que esses se realizassem.
            Pobre Estevão, mais uma vez em sua vida estava como que flechado por uma seta envenenada, que lhe contaminava a alma e o coração.
            Como há muitos anos atrás, lá pelos seus dezoito anos, quando sua vida desabrochava para a juventude, essa mesma seta o feriu, e sentiu murchar dentro de si, o que entendia ser amor.
            Mais tarde, antes de vir parar naquele local deserto junto ao mar, julgou que viveu uma sandice. Uma paixão doentia.
            E no momento tudo parecia querer repetir-se. E ele não se considerava capaz de suportar uma segunda vez o que enterrara num passado distante,  e julgava esquecido.
            Não se considerava capaz de enfrentar mais uma vez aquele pântano pelo qual por pouco não foi tragado.
            Seu coração não obedecia sua razão e por mais que se debatesse não conseguia afastar de si aquele sentimento intenso de ter a seu lado o belo rapaz, que embora não muito distante dele, parecia inacessível, como uma estrela a brilhar longe lá no céu.
            E permaneceu envolto nesse sentimentalismo exacerbado por dias. Foi quando uma luz brilhou na escuridão do túnel. “No próximo mês”, pensou consigo próprio, “telefonarei para o mercado na cidade e pedirei para que o Demétrius mesmo venha pessoalmente fazer a entrega de meus mantimentos. Quando ele chegar aqui proporei que me leve a passear para conhecer a cidade. Usarei como desculpa não ter dado certo nosso combinado com Noêmia”.
            Foi o que lhe pareceu mais sensato fazer. Arriscar que o jovem não se negasse a isso. E ele acreditava que não havia motivos para uma recusa
por parte do rapaz.
            Esse raciocínio acalmou um pouco seus sentimentos, conseguiu de certa forma tranqüilizar-se, acalentando no peito aquela esperança.
            Havia somente quinze dias pela frente para que pusesse em prática o planejado. Bastava somente ter paciência e tudo se realizaria dentro dos anseios de seu coração.
                  
                                          CAPÍTULO IX
            Passaram-se os quinze dias e Estevão então telefonou para o mercado e solicitou que Demétrius viesse pessoalmente à sua casa para a entrega  mensal de seus mantimentos.
            No dia seguinte ele acordou, tomou seu café da manhã e aguardou a chegada do rapaz. Lá pelas dez horas da manhã ouviu o barulho de uma caminhonete se aproximando. Saiu para a varanda e aguardou radiante a chegada do entregador.
            Demétrius desceu da caminhonete e conduziu os mantimentos para o interior da cozinha pela porta dos fundos. Terminada a entrega Estevão lhe deu uma gorjeta e como planejara acrescentou com certa displicência:
            - Demétrius, queria lhe pedir um favor.
            - Diga Estevão -  consentiu o rapaz. 
            - Gostaria que combinássemos um dia para  que você me levasse a passear e conhecer melhor a cidade, uma vez que não foi possível o nosso
acordo com Noêmia dias atrás.
            - Claro Estevão -  respondeu Demétrius - que tal no próximo domingo.
            - Ótimo, para mim está ótimo. Encontro você na praça central às dez da manhã, está bem assim?
            - Sem dúvida, combinado.
            Despediram-se os dois e trocaram como de costume um aperto de mão.
            Estevão viu a caminhonete se afastar com o coração a transbordar de alegria. Desta vez, daria certo, levaria inclusive o livro de presente como planejara. Passeariam juntos, visitariam alguns locais na cidade, e antes de regressar Estevão o convidaria para aparecer em sua casa para um bate-papo, beber alguma coisa, enfim passar o tempo e se conhecerem melhor. Diria algo assim como: “Gostaria que nos tornássemos bons amigos”.
            E mais uma vez seu coração oscilou da angústia e desespero para uma alegria arrebatadora. E já se imaginava a passar finais de semana na companhia do rapaz. Levaria ele pela costa. Subiriam juntos nos rochedos. Ele na certa bom nadador haveria de apreciar os locais onde as ondas se espalhavam tranqüilas pela orla marinha.
            E foram dias de serenidade entre a entrega dos mantimentos e a chegada  do domingo. Como o combinado, encontraram-se ambos, Estevão e Demétrius na praça central às dez da manhã, e este último conduziu Estevão por diversos locais da cidade, que considerou dignos de serem visitados por um turista. Levou-o ao museu de escravos, ao estádio de esportes, a um bosque com alamedas e bancos onde podia-se apreciar as árvores e inclusive pássaros raros da região. Disse haver um cinema só que fechara a certo tempo já e não sabia se reabriria. Mostrou-lhe um estabelecimento fechado com  portas de madeira e fachada de azulejos estampadas e disse tratar-se de uma casa noturna só para maiores de idade. Um local onde casais se encontravam à noite para assistir algum show de artistas, bem como bebia-se e dançava-se.
            Estevão demonstrou-se encantado com tudo e como Demétrius disse que não havia mais o que visitar e o passeio podia dar-se por terminado, este arriscou e fez a ele a proposta que planejara. Convidou-o a ir até sua casa no próximo final de semana caso estivesse disponível, para que conversassem um pouco mais, bebessem alguma coisa e conhecesse a bela paisagem onde encontrava-se instalada sua casa. Deu-lhe também o livro, dizendo que era uma forma de retribuir a gentileza do passeio. Demétrius assentiu, e disse que se não fosse no final de semana, telefonaria num dia que folgasse no mercado para saber se seria possível a visita. Estevão não pôs objeção, acrescentando:
            - Tudo bem, e se souber nadar pode ir preparado. Tratarei de conseguir em breve um barco de pesca assim nos divertimos um pouco mais.
            Despediram-se e Estevão ficou sentado no carro, olhando o rapaz que se afastava na certa rumo a sua casa.
            Depois partiu rumo a rodovia, baixando o capô do carro conversível.
Acendeu um cigarro, ligou o rádio e deixou que o vento soprasse por seus
cabelos e seu rosto.
            Queria o sol e o céu azul sobre sua cabeça,  e a música parecia embalar aquilo que tinha em mente, de que este era o dia mais feliz de sua vida. Disse consigo próprio: “Creio que Deus lá no alto lembrou-se de mim, ouviu e atendeu após tantos anos meus pedidos, o anseio de meu coração. Creio que agora compreendo o que é o amor.
            Ao chegar em sua casa, deixou o carro e antes mesmo de entrar dirigiu-se para os rochedos onde as ondas rebentavam estrondosamente. Subiu ao alto de uma delas e soltou um brado de triunfo. Seu coração parecia querer sair do peito.
            “Agora serei feliz, encontrei o amor e desta vez ele não escapará de minhas mãos. Demétrius ainda é jovem, na certa se casará e permanecerá aqui, a trinta quilômetros de distância e seremos para sempre amigos inseparáveis”, foi o que disse de si para si.
            A essa altura, talvez o leitor curiosos se pergunte da real natureza dos sentimentos que ligavam Estevão àquele rapaz. Indagar-se-á ainda: “ora, não quer ele tê-lo nos braços, acariciá-lo ou beijá-lo? Não sendo completamente ingênuo aquele que acompanha estas linhas aqui traçadas com cuidado, deve ter percebido que ressaltei certas características da personalidade de Estevão, que de certa forma não deixa sem resposta essa questão.
            Quando lhe atribui vaidade, arrogância, orgulho e egoísmo em partilhar  alegrias, já dever-se-ia dar-se conta o leitor de que nosso personagem, possui deveras conflitos de ordem profunda; não diria moral, pois não vejo nada que o desmereça devido ao fato de sendo homem ver-se atraído por outro  homem. Mas acrescentaria ainda um atributo ao personagem, que seria a leviandade que foi característica sua por longo tempo, ao menos até refugiar-se no que de início chamou seu paraíso.
            Não poderia ser o amor, paixão ou seja lá o nome que se dê ao sentimento que o ligou ao rapaz Demétrius, um instrumento pelo qual seria possível resgatar-se de todos esses atributos adversos a uma personalidade saudável. Ou porque não dizer, tornar-se um homem de caráter, no sentido estrito da palavra, como outro qualquer o seria?



                                           CAPÍTULO X


  
            Passada uma semana após Demétrius ter feito a entrega à domicílio na casa de Estevão, o telefone toca, este atende e ouve uma voz feminina do outro lado da linha:
            - Estevão, é você?
            - Sim é Estevão quem fala?
            - Sou eu, Noêmia você não apareceu no início do mês para pegar sua correspondência então arrisquei ligar.                                                                      
            - Eu agradeço muito Noêmia, na verdade já estamos quase na segunda semana de setembro e me esqueci completamente de ir até o correio mas...
            - Ouça Estevão, interrompeu a moça do outro lado da linha, na verdade não estou ligando só por esse motivo. Gostaria muito de que marcássemos um encontro para podermos conversar. Na verdade preciso esclarecer o que se passou naquele domingo lá em casa.
            - Creio que não haja nada a ser esclarecido – disse Estevão.
            - Por favor, suplico-lhe que me encontre assim que puder aqui na cidade após as dezessete horas, quando saio do correio. Preciso mesmo falar com você.
            - Está bem, pode ser na próxima segunda?
            - Para mim está bem, ficamos assim combinados.
            - Combinado Noêmia.
            - Até Estevão
            - Até!
            Estevão pôs o fone no gancho e ficou a cismar sobre que assunto queria Noêmia conversar.  O que haveria para ser esclarecido. Fora tudo tão óbvio. Ela havia se enamorado de Marcos, e ele nada mais fizera que simplesmente dispensar o passeio para não atrapalhar os dois de usufruir uma bela tarde de domingo em início de namoro. Ficou deveras curioso, mas sem tanto inquietação.
            A felicidade invadira sua vida, e ele a recebeu de braços abertos. Não via a hora de receber Demétrius em sua casa. Já começara inclusive a tomar certas providências. Tratou de fazer uma limpeza geral, organizar de forma mais cômoda os móveis. Bem como ocupou-se em treinar mais na cozinha. Preparar algum prato especial.
            Nisso os dias se passaram, chegou a segunda-feira e Estevão, de acordo. Com o combinado com Noêmia, foi encontrá-la. Ao chegar na cidade, de  longe a avistou parada junto à saída do correio. Ela assim que o viu aproximou-se, entrou no carro e foi logo dizendo:
            - Vamos para um lugar sossegado e discreto onde possamos conversar. Há um bosque aqui perto, você pode estacionar lá e poderemos conversar por algum tempo. Tenho algo importante para lhe dizer e não quero que isso passe de hoje.
            Ele seguiu suas instruções e chegando ao bosque estacionou. Noêmia parecia nervosa, sua voz era trêmula, e o sorriso de sempre desaparecera de seu rosto.
            - Bem, sou todo ouvidos – disse Estevão.
            - É o seguinte – iniciou Noêmia – deu-se um terrível mal entendido. Eu  convidei aquele sujeito, o Marcos, para ir em casa no mesmo domingo que você, para ver qual seria sua reação. Você foi gentil comigo no correio. Disse inclusive que lhe tratara pelo nome de forma inesperada e sentiu-se lisonjeado por isso. Desde aquele dia comecei a sentir-me apaixonada por você. Não que não houvesse sentido nada antes. Logo nas primeiras vezes em que você foi ao correio já senti certa por você certa atração. Afinal é um homem bonito e atraente.
            Só não sabia como abordá-lo. Foi então que surgiu a possibilidade do passeio. Você sempre me pareceu um homem rico e seguro de si, e eu de minha parte temi lhe dizer de imediato o que sentia. Então pensei comigo, se ele me convidou para um passeio talvez tenha algum interesse por mim.
            Porém permaneci em dúvida, e naquele domingo, quando convidei Marcos a ir lá  em casa, foi com o objetivo de testá-lo. Queria sondar se sentiria algum ciúme de mim, mas pelo que percebi deu tudo errado. Fui mesmo mal interpretada.
            Estevão não sabia o que dizer. Estava completamente despreparado para ouvir tudo aquilo. Sentiu-se frágil e inseguro, nenhuma palavra lhe vinha em mente que servisse de resposta àquela confissão amorosa.
            Apoiou a cabeça no volante do carro, ficou calado por alguns minutos, em seguida olhou Noêmia fixamente nos olhos e disse:
            - Infelizmente  Noêmia, sinto muito, seus sentimentos não são correspondidos. Apesar de ser um homem desimpedido seria incapaz de iludir alguém que me faça uma declaração como esta que você fez. Eu gosto muito de você, mas não passa de amizade, nada mais que isso.
            - Mas talvez Estevão...
            - Não Noêmia, não insista. Continue com seu namoro com o Marcos e procure ser feliz. Esqueça-me é o que lhe tenho a dizer.
            - Na verdade já  rompi com o Marcos. Disse inclusive a ele que preferia  sua companhia a dele naquele domingo, o que o deixou bastante irado. Ele é do tipo que não aceita um não de uma mulher quando está interessado. E eu cai na besteira de dizer que queria namorá-lo, para ver se lhe despertaria ciúmes em você.
            Agora não sei o que pode acontecer. Marcos é do tipo dado a se vingar. E preocupo-me que se não descontar sua ira sobre mim, talvez a desconte em você.
            - Não se preocupe comigo. Não romperei nossa amizade devido a esse incidente, a menos  que você prefira assim.
            - Na verdade, já estava preparada para ouvir um não de sua parte, mas, precisava confessar meus sentimentos. Julguei que talvez como já o conheço de vista há dois anos, e sempre sozinho, tivesse alguma chance.
            Continuaremos a nos ver quando for ao correio. Isso passará, sei que passará. Concluiu ela. E descendo co carro desapareceu por entre as árvores do bosque.
            Estevão permaneceu naquele local por algum tempo, absorto em seus pensamentos, intrigado com as peças que o destino vivia lhe pregando. Sentia pena da moça que possuía um sorriso tão meigo e encantador. Mas não tornaria a envolver-se com mulher alguma nunca mais. Fizera isso no passado e jurara a si mesmo não cair mais nessa.
            No início da terceira semana de setembro. Numa terça-feira, Estevão estava nos fundos de sua casa revolvendo a terra de alguns vasos de plantas que adquirira para embelezar o ambiente austero de sua casa, quando o telefone tocou, e ele, quase que intuitivamente deduziu quem era.
            - Alô!
            - Alô! Estevão?
            - Sim.
            - É Demétrius, estou ligando para avisar que folgo no próximo final de semana. Estou pensando em ir até aí, tudo bem para você?
            - Para mim tudo bem, estarei lhe esperando.
            - Procurarei não chegar muito cedo para não tirá-lo da cama, certo?
            - Não se preocupe com isso, pode vir estarei lhe aguardando.
            - Então até lá.
            - Até.
            Finalmente a primeira visita já estava confirmada. O tempo se responsabilizaria pelo resto.
            Estevão sabia ser gentil e atencioso sem afetação. Bem como, desde que Demétrius não buscasse algo além daquilo que estava disposto a lhe proporcionar, tudo seria um mar de rosas. E esse algo ao qual se referia Estevão, era o sexo.
            Esta era a segunda vez que vivenciava essa experiência: paixão completamente desvinculada de atração sexual, ou melhor visando o sexo.
            O que não impediu que até aquela altura tivesse levado uma vida promíscua, justamente no que se refere ao sexo. Chegando mesmo a contrair doenças venéreas.
            Mas agora, mais uma vez afirmava para si próprio, tudo seria diferente, sua vida ganhava um novo rumo. Se chegara a pensar em suicídio no passado, isso foi devido a rejeição perante o sentimento de verdadeira adoração que dedicou àquele primeiro amigo. Agora seria diferente, não seria necessário nenhuma confissão de sua parte. Ser correspondido ou não em sua paixão era algo que não lhe perturbava. Desde que não fosse legado às traças em seu novo sentimento, não haveria de sentir ciúme algum, ou ter necessidade de ouvir palavras por parte do outro que tornasse óbvio ser correspondido.
            E acreditava não idealizar coisa alguma, tinha em mente inclusive, que renunciar a ser correspondido, tornava mais nobre ainda seus sentimentos por Demétrius.
            Mais uma vez penso que o leitor venha a conjeturar a possibilidade de se vivenciar algo semelhante ao que insisto atribuir a meu personagem. Esteja tranqüilo o leitor, não tornarei a ficar pondo o dedo nessa ferida, que insisto em querer cicatrizar aprofundando-me nos mistérios que abriga o coração humano.



                                     CAPÍTULO XI


 
  
            No final de semana, na manhã de sábado, Demétrius chega à casa de Estevão.                                                                                                                        
            Este já o aguardava e foi recebê-lo com entusiasmo à porta.
            - Veio com a caminhonete do mercado ou de ônibus rodoviário?
            - Com a caminhonete. Tomei-a emprestado por este final de semana.  
            - E volta quando?
            - Se não atrapalhar em nada, voltarei só no domingo à tarde.
            - Na certa não atrapalhará. Será um prazer tê-lo aqui até o domingo. Concluiu Estevão.
            Demétrius sentiu-se contente em ser assim tão bem recebido. Quanto a Estevão não continha-se em demonstrar a alegria de tê-lo em sua casa, dizendo que era a primeira visita que recebia em dois anos desde que instalara-se ali. Conduziu o rapaz pela casa, familarizando-o com ela.
            - Poderá dormir neste quarto próximo ao meu. Preparei-o recentemente para hóspedes e você é o primeiro.
            Demétrius gostou da casa. Embora antiga era aconchegante e confortável. Possuía calefação e água quente nas torneiras. Isso era bom, pois embora se aproximasse a primavera ainda fazia frio. Olhou com atenção tudo que Estevão lhe mostrava, desde os quadros, até as cortinas e os tapetes. E ficou feliz com o amigo que se mostrava tão satisfeito em recebê-lo em sua casa.
            - Mais tarde, após comermos alguma coisa, vou levá-lo para conhecer a paisagem costeira - disse Estevão – sei que vai apreciá-la. Apesar de ainda estarmos no inverno, o tempo está firme e você poderá ver quão magnífico é o pôr-do-sol aqui. Podemos contemplá-lo por cima dos rochedos próximo ao mar. Em breve chega a primavera, o tempo esquentará um pouco mais e você poderá nadar, bem como   estou providenciando um barco para que se possa pescar. Hoje sugiro que você se acomode em seu quarto. Em seguida comeremos alguma coisa, e descansaremos um pouco na sala. Depois o levarei para começar a conhecer os arredores. Desde a mata próxima à rodovia até a orla marítima repleta de rochedos. Bem como a praia onde as ondas morrem na areia, sem debaterem-se com a violência com que se chocam contra as elevações de pedra.
            Para mim este é um lugar paradisíaco, onde pode-se desfrutar de paz e usufruir de uma paisagem deveras maravilhosa.
            É uma amizade o que começa a nascer entre nós, e estou certo que perdurará por muito tempo. Agora vou deixá-lo a vontade para instalar-se no quarto e em  seguida poderemos conversar um pouco na sala até sair o almoço.
            Espero que goste de minha comida, como percebeu não tenho empregados e preparo eu mesmo as refeições.
            - Não se preocupe com isso Estevão, o que você preparar estará ótimo para mim.
            E assim, Estevão e Demétrius principiaram numa amizade que parecia para ambos longa e duradoura. Este foi o primeiro de inúmeros finais de semana que desfrutaram juntos naquele local que deveras proporcionava paz e tranqüilidade para qualquer um que não exigisse nada além de uma natureza ainda intocada, como que preservada para contemplação, e somente para isso.
            Passou-se o sábado e logo chegou a tarde do domingo e Demétrius regressou à cidade. Estava feliz por haver aceito o convite de Estevão. Foi mesmo um agradável final de semana e a companhia do novo amigo despertou nele um sentimento fraterno. Sim, Estevão poderia mesmo ser um irmão que nunca teve. “Apesar de ser mais velho que eu, trata-me como se fôssemos de uma mesma idade,e tem uma conversa agradável, além de conceder-me espaço para dizer o que penso. Imaginava-o uma pessoa austera que retirara-se para essa pequena cidade, trazendo consigo o despreza daqueles que se consideram superiores e mais cultos que as pessoas das pequenas cidades interioranas. Mas vejo que me enganei”, foi o que deduziu consigo próprio Demétrius ao regressar para a cidade.
            Estevão por sua vez estava feliz e agora, mais que nunca, sentia-se seguro de que encontrara em Demétrius o que sempre esperou encontrar em um outro homem. Segurança e lealdade, além de uma possível devoção em amizade sincera, despida de interesses que tinha para si mundanos, como dinheiro e sexo.
            Já adentrara os trinta, e viu naquele jovem de dezoito, a possibilidade de dividir o que considerava seu tesouro. Seus sentimentos afetivos, seus conhecimentos, o que acumulara com o tempo e porque não dizer também sua fé e esperança. Não só num Deus, mas também no próprio homem. Era através da amizade com Demétrius que ele acreditava poder romper a solidão e o desprezo que sentia para consigo próprio, pois foi este o legado que trouxe consigo  da adolescência para a vida adulta.
            Não tinha idéia porém do que o destino reservava ainda para ele. E não se Imaginava sofrendo dor maior do que já havia sofrido.
            Porém, o destino do homem lhe é velado, e Estevão que se assentava num assento confortável que ora a vida lhe proporcionava, acreditava que jamais provaria outra vez dos reveses da existência.
            Estava convencido de que já sofrera o auge do sofrimento e agora a sorte lhe estendia os braços e a vida o acolhia naquilo que lhe era por métrica de um ideal, a sua amizade por Demétrius, medida de felicidade plena. Deus realmente lhe queria bem lá nas alturas, foi a conclusão a que chegou.


                                   CAPÍTULO XII


            O tempo passou, mais dois anos se consumaram e Estevão e Demétrius desfrutavam daquela amizade que qualificaria como leal e altruísta.
            Noêmia continuava trabalhando no correio e vez por outra, ou melhor quase todo mês tinha contato com Estevão que ia até lá para saber de sua correspondência.
            O tal do Marcos procurava Noêmia uma vez ou outra, não desistindo de quem na certa, como dizia ele: “era a mulher de sua vida mas ela não se dava conta disso”. Se acaso cruzava com Estevão evitava-o inclusive no olhar, não por covardia, ao contrário pelo ódio que trazia consigo, mantendo contra este uma sede implacável de vingança.
            Foi então que o pai de Noêmia, dono de uma loja de tecidos na cidade veio à falência. O pobre não suportou o baque, e para piorar a situação teve um enfarto repentino.
            Noêmia e sua mãe Gertrudes entraram em desespero. A quem recorrer. Noêmia lembrou-se de Estevão, não por ser rico, mas porque sondava a generosidade de seu coração.
            Ligou para sua casa, a essa altura ele já providenciara a secretária eletrônica para o telefone.
            Era verão e quando Noêmia ligou o telefone acusava que deixa-se recado, logo deduziu que ele deveria estar a fazer seu rotineiro passeio pela orla.
            Não hesitou em pedir a este  que entrasse em contato com ela no dia e horário que deixara marcado na secretária eletrônica.
            Ao regressar de seu passeio, Estevão olhou as cartas que se amontoavam e pensou consigo: “qualquer hora seleciono alguma e respondo, não por saudade, mas sim por consideração”. Em seguida lembrou-se de verificar se havia recados na secretária eletrônica e para surpresa sua ouviu a gravação deixada por Noêmia.
            Era uma quarta-feira e ela marcara o encontro para o dia seguinte. Intrigado pensou consigo próprio: “não é possível que ela venha a insistir naquele assunto de romance entre nós. Irei ao encontro e desvendo esse mistério, tanto tempo sem me procurar e agora marca um encontro assim, de um dia para outro. Amanhã estarei lá na porta do correio as dezessete horas como da outra vez”.
            Foi para a cozinha verificar o que prepararia para o jantar e disse consigo mesmo: “que maravilha, não esperava despertar em Demétrius o gosto pela literatura, no entanto já me tomou emprestado quatro livros e disse querer ler outro”. Esse pensamento lhe alegrou e entusiasmado decidiu preparar o jantar ouvindo música. No próximo domingo Demétrius viria vê-lo e na certa tocaria no assunto da pesca novamente. Estevão pensou, vou adquirir um barco pequeno com alternativa de remo e motor. Será mesmo prazeroso ir até alto mar ver se pescamos algo.
            Havia adquirido um livro que considerou verdadeira raridade no mercado, numa loja da cidade, e cogitou: “essa cidade, ainda que seja num fim de mundo, bem que dá acesso ao cidadão meios de consumo de alto nível”.
            Após o jantar, como sempre fumou seu cigarro e o que lhe ocupava a mente então era o telefonema de Noêmia. “Não é possível”, disse consigo mesmo, “isso na certa me custará uma noite de insônia”. Por mais que refletisse na questão não conseguia atinar qual seria o motivo daquele encontro. A única coisa que lhe ocorria era a reincidência de Noêmia em outra declaração de amor. Por outro lado, considerava-a sensata, e ele foi honesto e franco, deixando claro que entre eles não haveria jamais nada além de amizade.
            Lembrou-se que não tomara banho pela manhã e apagando o cigarro no cinzeiro, subiu as escadas e foi direto para o chuveiro. Ao sair do banho foi como previra; não sabia se lia, via T.V., ouvia música... pois em seu pensamento regressava a voz de Noêmia ao telefone. Ela parecia ter a voz grave, séria no recado. “Terá acontecido algo em relação àquele sujeito, o Marcos. Não é possível, ele não seria capaz de fazer qualquer mal a mulher que se diz apaixonado”, refletiu consigo mesmo.
            Olhou o relógio e já ia dando dez horas. “Vou desligar as luzes e me deitar talvez durma”. Desligou as luzes e foi para a cama, onde sentou-se e com o abajur ligado acendeu um último cigarro. Voltou a considerar o caso do telefonema. Do que poderia se tratar? Qual seria o motivo de uma ligação assim repentina depois de tão longo silêncio?”Apagou a luz do abajur, o cigarro findara e deitou-se. Como deduzira o sono  não lhe vinha. Lembrou-se do livro que comprara, reacendeu a luz do abajur e tentou dar continuidade a leitura. Mas seu pensamento insistia em regressar para a questão incômoda do telefonema, o que o deixou irritado.
            Olhou novamente as horas no despertador e já passava da meia-noite. Decidiu-se então descer para a sala, para ouvir música e ver se assim se concentrava na leitura.
            As músicas que vinham do rádio eram agradáveis, porém não conseguia fixar-se no livro. Deixara o maço de cigarros no quarto. Subiu, pegou-o e desceu decidido a preparar um café, ouvir música, fumar e já que a noite era de verão dar uma caminhada pela praia.
            Preparado o café, serviu-se de uma xícara e degustando sossegado seu cigarro a cada gole de café, permaneceu sentado numa poltrona da sala por longo tempo. Depois, saiu para a varanda e contemplou o céu estrelado e caminhando para a esquerda avistou o mar.
            A noite estava agradável, não fazia muito calor e decidiu-se em caminhar um pouco pela praia, pois a lua brilhava lá no alto convidativa.
            “Faz pelo menos uns vinte dias que não vejo Demétrius. Deve estar trabalhando muito”, pensou consigo, “e estudando também”. Não perguntara ainda a ele se pretendia fazer algum curso superior. Que formação gostaria deter, no que aplicaria seus estudos, em que pensava se formar.
            “Como é terrível a insônia” refletiu, “a noite se torna longa, como se o dia se recusasse a raiar. E depois vem o esgotamento, caso não se durma pelo menos um pouco durante o dia”, o que na certa seria seu caso.
            Sabia que o dia haveria de raiar e ela persistiria com o pensamento a divagar no  misterioso telefonema de Noêmia.
            Haveria de dirigir esgotado até a cidade, teria que ser cauteloso.
            Regressou para casa pois sentia-se cansado e já havia percorrido boa parte da praia. Seu relógio marcava quase duas da madrugada.
            Entrou em casa e sentiu fome, “antes assim”, pensou consigo, pelo menos não amanhecerei sem energias para nada. Foi para a cozinha preparar um lanche e tomar um pouco de leite.
            Ligou novamente o rádio, a música pelo menos distraia um pouco a mente. Ao voltar para a sala com o sanduíche, desligou o rádio e decidiu-se pela T.V. Encontrou um filme que pareceu-lhe interessante e que prendeu sua atenção. Ao terminar o filme, olhou para o cinzeiro deu-se conta de  que fumara um meio maço de cigarros. O relógio de pêndulo acusava cinco da manhã.
            “Vou tomar um banho” ,decidiu , “depois aguardo até as oito horas e ligo para Noêmia para saber o que se passa”.
            Tomado o banho, vestiu-se e aguardou impaciente ouvindo música o raiar do dia. Não recebia jornal ali, acompanhava os noticiários de T.V. e se dava por satisfeito. O dia raiou e ele regressou a mais uma caminhada pela praia. Próximo das sete horas voltou à casa e tomou o café da manhã. As oito em ponto ligou para Noêmia em sua casa. Esta atendeu ao telefone e disse  de forma lacônica que era necessário que se falassem pessoalmente. Ele então disse que as dezessete horas a encontraria na saída do correio.


                
                                                      CAPÍTULO XIII

            Às cinco da tarde em ponto Estevão pegou Noêmia no correio e seguiram para o mesmo bosque da outra vez. Ela mal entrou no carro e principiou  a chorar, o que deixou Estevão mais aflito do que já estava. Mas estacionou  e aguardou calado até que ela parasse de chorar. Então indagou:

            - Pelo amor de Deus Noêmia o que está acontecendo?

            - É papai, Estevão, ele teve um enfarto.

            - Como um enfarto, assim, sem mais nem menos!

            - Não, sua loja de tecidos faliu, e era a nossa principal e única fonte de renda, o coitado na certa não agüentou o golpe, e em resposta veio o enfarto.

            - Olhe Noêmia, gostaria de vê-lo, e se possível ajudar no que estiver a meu alcance, mas faço isso espontaneamente, não pense que esse incidente servirá para que de alguma forma eu volte atrás quanto ao que disse a você sobre sua declaração de amor. Somos simplesmente amigos.

            - Não se preocupe eu não estou relacionando uma coisa com a outra. Agradeço a ajuda que nos oferece, não sei se algum dia poderemos retribuir, portanto lhe serei eternamente grata, esteja certo disso.

            - Ele está em casa ou em algum hospital.

            - Esteve num hospital mas já regressou para casa. Ele balbucia algumas palavras e está paralisado do lado esquerdo. Minha mãe tem chorado dia e noite, você nem imagina o quanto estamos sofrendo. E como sabe, sou filha única, e daqui por diante teremos que sobreviver de meu emprego no correio.

            - Fique tranqüila, não sei se poderei fazer com que seus pais reconquistem a loja de tecidos, mas me disponho a ceder certa quantia que os ajudará a manter uma renda complementar a sua. Se isso a tranqüiliza, já me dou por  satisfeito.

            - Claro que isso nos ajudará muito, e como lhe disse lhe seremos eternamente gratos. Eu sabia que podia contar com você, muito obrigada Estevão.

            - Não tem o que agradecer. Posso ir vê-lo ainda hoje?

            - Sem dúvida, vamos agora mesmo, minha mãe ficará feliz em revê-lo.

            Estevão seguiu para a casa de Noêmia. Lá chegando, constatou o estado deplorável de seu Julio, e comoveu-se com o sofrimento expresso nas feições de dona Gertrudes. Como prometera, disse que estava disposto a ajudá-las. Tentou dizer algo a seu Julio mas preferiu ficar calado pois não sabia se este compreenderia suas palavras ou se lhe diria algo de volta.

            Retirou-se pesaroso e dirigiu o mais depressa que pôde de volta para casa. Estava esgotado e a cena que presenciara na casa de Noêmia o deixou ainda mais abatido.

            Haveria de providenciar uma certa quantia para que Noêmia fizesse uma aplicação em algum banco e pudesse complementar a renda da família. No momento era só isso que podia fazer.

            Estevão apesar de não ter mais freqüentado a casa de Noêmia desde o domingo em que esteve lá com Demétrius para o passeio combinado e encontrou-se com Marcos, nunca esqueceu-se da pessoa afável e alegre de dona Gertrudes e a maneira educada com a qual fora recebido. Sendo assim sentia muito a fatalidade que sobre eles se abatera.

            Porém, a vida é assim mesmo, e eu devo dar-me por satisfeito em poder ajudá-los com certa quantia financeira. Espero que o pai de Noêmia não vá deixar viúva sua mãe tão cedo.

            E envolvido nesses pensamentos chegou em casa e foi de imediato tomar um banho, comer alguma coisa e ir para cama, o coitado estava esgotado.





                                CAPÍTULO XIV




            Apesar do incidente narrado no capítulo anterior, Estevão continuou a ter seus contatos freqüentes dom Demétrius, e como já foi dito antes, acreditava haver encontrado sua parcela de felicidade no convívio com o rapaz.

            Alegrava-se com a maneira inteligente como Demétrius absorvia o que ele procurava lhe transmitir sobre seus conhecimentos, bem como o gosto que desenvolvera nele leitura, música e artes em geral. Ficou espantado como o rapaz demonstrou interesse por assuntos diversos como religião, mitologia e política.

            Estevão ficou satisfeito por não ter se desfeito de muitos de seus livros e por vê-los agora sendo úteis para a formação cultural de seu jovem amigo.

            Certo dia Demétrius o surpreendeu com uma pergunta repentina:

            - Estevão, você já passa dos trinta e avança para os quarenta, não pensa em casar-se, ter filhos?

            Estevão manteve-se calado por um momento, depois respondeu de forma convicta:      

            - Não.

            Ao que o rapaz insistiu:

            - Mas na certa já se apaixonou por alguma mulher, ou até mesmo teve muitas em seus braços?

            Ao que o outro acrescentou simplesmente:

            - Nem tantas assim – e sugeriu que mudassem de assunto.

            O rapaz respeitou o que tomou como um segredo do outro e começou a falar do livro recente que lia, do estilo do escritor e sua narrativa. Estevão respirou aliviado e sugeriu a ele que lesse algo de Dostoievski, na certa encontraria na cidade obras suas.

            Porém o rapaz tornou a tocar em assuntos os quais Estevão evitava:

            - Mas me diga Estevão e sua família, seus parentes, você me disse que veio para cá antes dos trinta, com vinte e sete, não sente falta deles?

            Este se viu desconcertado e respondeu simplesmente:

            - Fui criado por meus avós, que já faleceram, bem como meus pais. Portanto não tenho muitos motivos para saudades.

            - E as cartas que você constantemente recebe? Insistiu o outro.

            - Muitas são de amigos que deixei para trás, e poucas são de algum parente que insiste em saber como estou, mas confesso a você que me sinto tão bem aqui, que principiei até mesmo em deixar de respondê-las. Sempre fui dado a uma vida de isolamento, espero que não se espante em ouvir-me falar assim.

            Ao que Demétrius respondeu:

            - De forma alguma, é um direito seu.

            Estevão então exclamou entusiasta:

            - Creio que nosso barco chegue amanhã, segunda e sendo assim poderemos sair para pescar como combinamos.

            - Bravo! – exclamou Demétrius – poderemos fisgar até um peixe-espada.

            Estevão riu contagiado pela alegria do outro e ambos partiram para um passeio pelos rochedos à beira da encosta.




                                 CAPÍTULO XV




                 

            Apesar do ocorrido com Noêmia e sua família. Bem como o fato do tal Marcos repentinamente ter afrontado Estevão certo dia na cidade. Tudo permanecia para Estevão dentro do âmbito da paz de espírito conquistada.

            Nesse dia em especial, foi ao correio pegar sua correspondência e Noêmia lhe disse  que havia uma carta registrada, que necessitava de sua confirmação de recebimento. Estevão verificou no envelope o remetente. Tratava-se de uma carta de um de seus irmãos. “O que haverá de tão importante nesta carta”, indagou-se intrigado.

            - Obrigado Noêmia! E quanto a seu pai  como está?

            - O médico diz que por enquanto, apesar das seqüelas, ele ainda viverá por um bom tempo. Isso nos dá um certo conforto. Não sei como mamãe reagiria a sua perda, afinal ela só tem a mim e a ele.

            - Fico satisfeito em saber que ele não nos deixará tão cedo. Lembranças à dona Gertrudes.

            - Eu as darei, obrigado.

            E Noêmia viu atravessar a porta rotatória de saída, aquele homem que permanecia tendo um lugar reservado em seu coração. “Que pena não ter sido correspondida”, murmurou ela baixinho.

            Estevão mal saiu do correio e na calçada mesmo abriu a carta. Leu e as lágrimas lhe turvaram a vista, a única irmã de sua mãe, aquela que o acompanhara em sua infância com seus avós falecera.

            Passou a mão pelos olhos, barrando as lágrimas que principiavam a deslizar por seu rosto, entrou no carro, deu partida para estacionar num local mais tranqüilo, onde releu a carta e só então se permitiu prantear a morte de sua tia.

            “Agora já não há mais ninguém que me conduza a regressar à minha terra natal”, pensou consigo desolado, “esta era a única pessoa que ansiava ainda poder rever e alegrar meu coração em relação aos demais que perdi tão cedo. Amanhã mesmo escreverei algumas linhas dizendo que recebi a  notícia e que não pretendo regressar pois o trabalho me prende aqui. Dessa forma não insistirão no assunto”.

            Tornou a dar partida no carro e foi rumo à saída da cidade que dava acesso a rodovia. Foi então que repentinamente um outro carro à frente do seu lhe barrou a passagem. Estevão fez uma manobra rápida, que o livrou de ir de encontro ao veículo.

            Do carro saltou Marcos, que em altos brados dirigiu-se a ele em fúria e voz alta:

            - Seu sodomita de uma figa. Fica lá naquela sua casa na companhia de um rapaz de vinte anos a maior parte do tempo. E ainda por cima arrebata  a mulher com quem ia me casar. Você verá, não sairá livre desta. Aguarde, pode aguardar.

            E regressando ao carro desapareceu numa das ruas da cidade.


  

 



                                      EPÍLOGO



   


            Estevão sentiu como se todo um mundo viesse abaixo e sentiu seu coração bater acelerado, o medo inundou sua alma. “Meu Deus, eu lhe rogo, não permita que esse homem me prive do que conquistei aqui, com tanta dor e sofrimento”, suplicou balbuciando as palavras entre soluços de

um novo pranto.

            Como pôde ele saber de minha amizade com Demétrius. E ainda por cima impropera em voz alta contra mim, chamando-me de sodomita. Do que não será capaz esse fulano para ter sua sede de vingança aplacada.

            Enquanto o desespero tomava conta de sua alma. Marcos se reunia com sua corja de comparsas, através dos quais tomou conhecimento dos encontros entre Estevão e Demétrius na casa próxima ao mar.

            - Ele verá o que farei.- repetia Marcos aos demais em voz alta – Sei como liquidar com isso. É para esses casos que nos vale ter consigo uma bela arma de fogo.

            - Veja lá o que vai fazer -  advertiu um do grupo.

            - Ora, cale a boca – berrou Marcos exaltado.

            Estevão já percorria a estrada aproximando-se de sua casa. Trazia consigo os pensamentos em maresia. Sua amada tia que se fora, aquele facínora que o ameaçara, Noêmia que agora era só tristeza e lhe lançava olhares de súplica. O que se passava? Tudo estava indo tão bem. Os acontecimentos tomavam um rumo como se tendessem a se desenrolar como um rio calmo e tranqüilo, rumo a um mar de esperanças e, porque

não dizer felicidade.

            Porque tudo aquilo assim repentinamente, de forma tão inesperada. E seu coração principiou mais uma vez a latejar numa dor que parecia em maior proporção que a que já provara no passado.

            “Vou ligar para Demétrius. Quero vê-lo, se possível, no próximo final de semana.  Sairemos juntos para pescar, conversaremos sobre assuntos diversos, farei uma comida especial, beberemos alguma coisa e isso tudo será superado. Sim, essa é a solução, estou me apavorando à toa”, conclui numa tomada só.

            Pegou o telefone, ligou para o mercado e comunicou seus planos a Demétrius, que respondeu do outro lado da linha:

            - Por mim tudo bem, folgo mesmo nesse sábado. E posso ficar até o domingo à tarde.

            - Ótimo, assentiu Estevão. Ah... Demétrius, por favor.

            - Diga Estevão.

            - Vinho, traga vinho. Tinto e seco está bem?

            - Tudo bem, não me esquecerei.

            Estevão respirou aliviado e selecionou uma música em especial para ouvir, Sonata ao Luar de Beethoven, uma de suas músicas prediletas. A música acalmou mais ainda seus sentimentos e ele aos poucos recuperou o auto controle.

            Chegou o sábado. Logo cedo ouviu batidas na porta e deduziu ser Demétrius, que sempre esquecia de usar a campainha. Deve ter vindo de ônibus pois não ouvi a caminhonete. Acertara. Este entrou pela sala alegre e satisfeito exclamando:

            - Aqui está seu vinho, como me pediu.

            - Grato Demétrius, estou contente em revê-lo. Sente-se aí na sala que estou preparando meu café da manhã, você me acompanha?

            - Não, esteja tranqüilo, já tomei meu café.

            Quando se dirigia para a cozinha, Estevão ouviu a campainha da porta e pediu a Demétrius que visse quem era, acrescentando:  - Estranho, nunca recebo ninguém.

            Demétrius abriu a porta e exclamou surpreso:

            - Ora essa, não há ninguém aqui!

            - Como assim - falou alto Estevão da cozinha vindo rumo a sala de estar.

            Demétrius saíra para a varanda em busca de ver se avistava alguém.

            Estevão permanecia junto à porta, foi quando num lapso de tempo, ouviu          três disparos vindos dos arbustos junto à casa. Estevão assustou-se e sem ao menos se mover, viu tombar do lado esquerdo da varanda, sob o sol da manhã o corpo de Demétrius, atingido em cheio no peito pelos disparos. Correu para junto do amigo em desespero. Mas, era tarde. As balas cravaram no peito bem à altura do coração.

            Estevão olhou rumo aos arbustos de onde vieram os disparos. Pode divisar a figura de Marcos que se ocultava na mata, para em seguida ouvir o barulho de um veículo que se afastava rumo à rodovia.





                                                FIM






                                                                 IVAN DE ALENCAR






Nenhum comentário:

Postar um comentário