“GRÃOS DE AREIA AO MAR”
“EM TODO O TEMPO AMA O AMIGO,
E NA ANGÚSTIA NASCE O IRMÃO.”
Provérbio de Salomão
CAPÍTULO I
Naquele
local distante de qualquer cidade. Onde as ondas da praia batiam forte nos
rochedos e o barulho as vezes ensurdecedor do mar provocava medo em qualquer
um, morava um jovem de vinte e sete anos de nome Estevão.
Perdera
cedo seus pais e avós maternos, só lhe restava de parente próximo pelo lado
materno uma única tia, irmã de sua mãe, a qual há anos não via.
Isolado
naquele local já há certo tempo, de lá quase não saia. Mudara-se há algum tempo
logo após a morte de uma irmã de seu pai, que lhe deixou a propriedade em testamento.
Avesso
que sempre foi ao convívio com familiares, não hesitou em abandonar a casa
paterna onde possuía alguns parentes, para mudar-se para aquela casa que herdara e logo num local que
considerou, adequado e agradável ao mesmo tempo. Adequado por ser um ermo.
Agradável pela proximidade ao mar.
Assim
que o advogado da citada tia transmitiu o comunicado da herança, Estevão deu
por encerrado seus estudos. Abandonou um trabalho promissor numa imobiliária e
mudou-se.
Possuía
alguma renda em aplicação de herança de seus avôs e pais. E deu-se por feliz por aquela tia com a qual
mantinha pouco contato, premiar-lhe assim com um testamento.
Não
era um homem muito atraente. Embora vaidoso, poucas conquistas amorosas
alcançara até então. Ocultava na alma o segredo de sua solidão, e os amigos que
possuía, ou as pessoas com as quais convivia tinha por dispensáveis. Tornou-se
fácil pois isolar-se naquele ambiente para muitos senão hostil na certa
entristecedor.
Durante
os dois primeiros anos de sua estadia ali, praticamente não abandonou a região
costeira. Logo de chegada providenciou entrega de alimentos à domicílio e
certificou-se se podia postar no correio e dispor de um telefone.
Tomada
estas providências considerou-se no paraíso. Todos os dias percorria longas
distâncias próximo ao mar, arriscando-se muitas vezes inclusive a subir nos
rochedos. Encontrava prazer ao contemplar as ondas batendo com violência nas
pedras abaixo de seus pés. E olhava o sol meio que dourado, forçando-se para
manter os olhos abertos, de forma a poder, de quando em quando, seguir o vôo de
alguma gaivota.
Só
Deus lá nas alturas conhecia seus pensamentos, e recolhia consigo os
sentimentos ainda intensos daquele jovem que adentrava na fase adulta.
A cidade mais próxima ficava a cerca de trinta
quilômetros, e passado os dois primeiros anos decidiu Estevão adquirir um
carro, de forma que pudesse ter acesso a ela sem recorrer ao transporte
rodoviário.
De
posse do veículo suas visitas à cidade tornaram-se mais rotineiras, não
deixando ele no entanto suas longas caminhadas a beira mar sempre que podia. E
isso se dava com freqüência, várias vezes por semana.
Recebia
cartas pelo correio e as respondia de forma sucinta, deixando transparecer nas
palavras alegria e satisfação em sua nova vida. Dessa forma, pensava consigo:
“evito que venham até mim importunar-me”.
E
na verdade sempre senhor de certo equilíbrio, tanto na saúde quanto nos demais
aspectos da vida, não causava preocupação a ninguém.
Passou-se
assim o tempo e sem que Estevão se desse conta, começou a despertar a
curiosidade de certas pessoas da cidadezinha próxima a sua casa no mar.
Como
ia com freqüência ao correio pegar sua correspondência, além de suprir-se no mercado
de alimentos, surpreendeu-se certo dia com uma funcionária do correio que,
displicentemente, soltou seu nome e disse:
-
Estevão, hoje não há correspondência para você... - espere há algumas sim, mas
creio que se tratem de propagandas ou coisa do tipo.
-
Grato - respondeu Estevão e retirou-se.
Intrigado
por ouvir seu nome citado assim de forma familiar, entrou no carro e ficou um
tempo a pensar consigo próprio: “esta cidade não é tão pequena como parece,
poderia sondar e ver o que possui de atrativos. Quem sabe, uma biblioteca, um
cinema, ambientes noturnos, enfim locais onde pudesse começar a ter contato com
outras pessoas. Afinal, já se passaram dois anos desde que cheguei aqui e não
conheço viva alma”.
E
foi envolvido por esses pensamentos que deu partida no veículo rumo à sua casa.
No
caminho continuou seu monólogo íntimo: “Devia ter conversado alguma coisa com a
moça do correio, afinal foi tão gentil. Há também o rapaz das entregas
esporádicas do mercado, esses tem sido meus únicos contatos desde que cheguei
aqui. Demétrius, o nome do rapaz, nome bonito, e bem jovem ainda, talvez não
tenha vinte anos. Amanhã regressarei à cidade e passarei no mercado e no
correio. Conversarei um pouco com Demétrius, em seguida vou ao correio mesmo
que não haja correspondência e pergun- tarei o nome daquela moça. Usarei de
algum pretexto para conhecê-la melhor”.
E
assim percorreu os trinta quilômetros que separava a casa da cidade e num
piscar de olhos já estava na soleira da porta.
A casa não possuía muitos cômodos. Era
assobradada mas restringia-se a uma sala, a cozinha, um banheiro e uma área de
serviços. Isso no andar inferior. O superior possuía dois quartos, dois
banheiros sendo, um dentro do quarto que Estevão ocupava, outro no corredor. E
mais um cômodo onde Estevão alojava livros os quais lera no passado, além de
outros objetos considerados inúteis como: malas de viagem, máquina de escrever,
roupas que já não usava, dentre outras coisas. Ah! Sim, havia também o sótão
que permanecia para ele um mistério, pois logo que instalara-se, verificou que
este não possuía iluminação e tão pouco conseguiu abrir uma das janelas que
percebeu dar para o mar. Certo de que só havia velharias e teias de aranha,
nunca teve a curiosidade em sondar o que haveria nele.
O
local mais agradável da casa era sua sala de estar, onde conservava os móveis
da tia, que embora antigos, considerava de bom gosto. Ali, passava seus fins de
tarde a ouvir músicas, beber alguma coisa e vez por outra cochilar antes do
pôr-do-sol. Quando então saia para o lado esquerdo da varanda e contemplava o
austero astro, quase sempre avermelhado
a declinar no horizonte, desaparecendo no limiar das águas daquele belo mar.
Estevão
habituou-se com facilidade a idéia de cozinhar e lavar para si próprio. E vez por outra, não raro
acumulavam-se louças na pia e roupas na máquina de lavar.
Transcorria
assim os dias em uma seqüência rotineira de caminhadas pela manhã e
contemplação ao alvorecer.
Naquele
dia em especial, ao regressar da cidade, sentiu-se inquieto e triste, tomado de uma melancolia
entorpecedora.
“Demétrius...
bonito nome”, era um dos pensamentos que lhe ocorria. Evitara até este momento
transportar-se no tempo e visitar o passado. Mas agora, apesar do isolamento
não implicar em solidão, sentiu o coração bater num ritmo diverso, e mesmo
contra vontade, os pensamentos insistiam em viajar no tempo, rumo ao passado.
CAPÍTULO
II
Foi
tomado por este estado de extrema nostalgia que ele ficou paralisado por horas
numa poltrona da sala. Quando deu-se
conta, o sol já estava a se por.
Levantou-se
e, com a mente turvada pelas recordações, saiu para a varanda como sempre o
fazia e foi contemplar o astro rei a declinar no horizonte.
Mas
algo em seu íntimo havia mudado. E do estado tranqüilo e sóbrio que conduzira
seus dias até então, sentiu reacender como chama ardente a memória do que
deixara para trás.
A
noite chegou e embora não senti-se fome, obrigou-se a comer alguma coisa. Pôs
uma música, julgando que assim seus sentimentos em verdadeira erupção se
acalmassem. Mas deu-se o contrário, ao invés disso, eles transbordaram feito lava dum vulcão. E Estevão
chorou, pranteou mesmo como talvez nunca houvesse pranteado antes.
Ao
recuperar parte de suas forças, pois por longo tempo as lágrimas lhe escorreram
incessantes pelo rosto, subiu as escadas rumo ao quarto e contemplou-se no
espelho. Viu-se abatido no semblante e levou as mãos trêmulas ao rosto. Jamais
imaginara que haveria de reincidir naquilo que ora lhe transpassava o peito.
Não pelo menos desde o dia em que chegara àquele lugar onde julgara encontraria paz para seus tormentos.
E
atirou-se na cama temeroso, prevendo insônias vividas tempos atrás. Fixou o
olhar no teto do qual pendia um lustre antiquado; repleto de pedacinhos de
vidro compactos e coloridos formando mosaicos variados. Regressou à sala, tomou do toca discos que
instalara lá e voltou para o quarto.
“A
música”, pensou consigo, “a música há de me ser por acalanto”. Escolheu um
clássico a esmo e pôs para tocar. Porém, deu-se conta de que o silêncio era
mais condizente com seu estado de espírito. E então como a suave brisa marítima
que varria aquele paraíso seu, suas recordações foram ressuscitando uma após
outra, em sólida e dolorosa procissão de imagens.
A
princípio veio-lhe a figura daquela bela
jovem com quem noivara embora sem amá-la, para em seguida surgir o semblante
fatídico do amigo que há anos não via e pelo qual seu coração queimou em brasa;
logo cedo saído da adolescência.
Recordou
a forma como tentou evitá-lo temendo não ter forças de ocultar dele seus
sentimentos. Mas, este foi persistente na amizade, e quando Estevão tentou um
rompimento com o amigo, dele se afastando de forma a não revê-lo jamais, o
outro obteve uma forma de contatá-lo conduzindo-o sem querer a confessar o que sentia.
O
tempo havia parado e ele ia adiante em suas recordações. Lembrou-se da forma
abrupta como ambos, ele e o amigo, se separaram. Este pondo a mão em sua perna,
levantou-se do banco da praça onde estavam sentados e disse simplesmente: “Não
me procure nunca mais”.
Era
noite e Estevão então por sua vez, deixou a praça e caminhou decidido rumo a uma
ponte da qual pretendia precipitar-se. O fato não consumou-se, pelo destino,
que providenciou para que ele desse de encontro com uma amiga, que por acaso
fazia o mesmo caminho.
Passou
a mão pelos cabelos, como a querer espantar aquela seqüencia de pensamentos que
insistiam em regressar em sua mente.
Desligou
o lustre e recostou-se na cama. Seus olhos ainda ardiam devido ao pranto. Como
haveria agora de regressar ao sossego que desfrutara nestes últimos dois anos.
Naquele lugar que era para ele tão acolhedor?
Ouvia
ao longe o bramir das ondas nas pedras. O mais era silêncio. O relógio antigo
de pêndulo da sala lá embaixo, cadenciava o passar das horas. Olhou para o
despertador e assustou-se. Já passava da meia-noite. Jantara mal e tão pouco
sentia sono. Decidiu por descer para a sala de estar. Ligou a televisão mas não
encontrou nela nada que lhe fixasse a atenção. Foi para a cozinha, fez um sanduíche, comeu,
tomou um copo de leite e regressou para o quarto.
Era
inverno e portanto, nem sequer podia cogitar em uma caminhada próximo ao mar
devido ao frio intenso.
Antes
de instalar-se naquele lugar afastado de qualquer centro urbano, levava uma
vida pouco agitada, porém quando lhe vinha a insônia podia recorrer em sair para algum lugar. Como um possível
bar que varasse a noite aberto. Agora se
via em aflição, pois além da insônia, a solidão lhe pegou de sobressalto e
sentiu-se enjaulado naquele mausoléu que herdara.
Regressou
para o quarto e dessa vez ligou o rádio num volume baixo, e estendeu-se na
cama. “Por sorte tomei um banho pela manhã”, pensou consigo e graças a Deus
pouco tempo depois adormeceu.
CAPÍTULO III
Despertou
tarde. Verificou as horas no relógio. Já passava das onze da manhã. Decidiu-se por uma refeição que lhe
permitisse comer novamente lá pelo final da tarde. Sendo assim preparou um bom
prato. Na verdade, estava faminto. Após a refeição preparou um café e em
seguida regressou ao quarto para pegar seu cigarro. Deu-se conta então que
fumara o último no dia anterior.
“Isso
é mesmo uma droga”, disse para si mesmo, “agora terei que ir até a cidade”.
Pegou o carro extremamente irritado, pois seus planos era passear pela praia
uma vez que apesar do frio o sol brilhava, e o mar constantemente agitado
daquela região, encantava-o. E esperava extrair do passeio um refrigério para o
tormento que vivera até altas horas da noite anterior.
“Talvez
seja melhor assim”, replicou consigo mesmo acrescentando,
“aproveito para bater um papo com
o rapaz do mercado; passo pelo correio e pergunto o nome daquela moça
intrigante que soltou meu nome ao acaso, como se houvesse alguma intimidade
entre nós”.
Chegando
à cidade dirigiu-se direto para o mercado. Lá se garantiria com cigarros por
longo espaço de tempo. Estacionou o carro e adentrando o estabelecimento deu de
cara com Demétrius o entregador, que distraidamente empilhava latas numa
prateleira.
Sentiu
então um calafrio a percorrer-lhe a espinha. Não havia atentado ainda para a
beleza do rapaz. Não muito alto, cabelos negros curtos e fartos, uma face
jovial e arredondada na qual um par de olhos castanhos, que não expressavam
alegria ou tristeza, mas se conjugavam perfeitamente bem com o nariz e a face bronzeada. Seu físico atlético e
robusto de rapaz que mal deveria ter ultrapassado os dezoito anos também o
fascinaram.
Sentiu
como se as palavras fossem lhe travar na garganta, no entanto balbuciou
procurando disfarçar seu nervosismo:
-
Demétrius, poderia me ver dois pacotes de cigarros?
-
Pois não Estevão, - respondeu o rapaz, acrescentando - se houvesse telefonado
eu teria levo até sua casa.
-
Imagine, fazer você ir tão longe devido a dois pacotes de cigarros. Mas, mesmo
assim, obrigado.
Deu
as costas e retirou-se apressado. “Meu Deus, pensou ele, o que é isso agora que
me acomete? Imaginei que jamais regressaria esse sentimento remoto que a alto
custo deixei enterrado no passado”.
Pegou
do carro e foi para o correio. Logo ao entrar viu a moça que o atendera da
última vez próxima ao balcão.
-
Olá! - exclamou ele.
-
Olá! Estevão - disse a moça, com um largo sorriso estampado no rosto – só um
momento - acrescentou.
Verificou
a caixa-postal e voltou com a correspondência.
-
Desta vez há cartas.
-
Muito obrigado - disse Estevão -
indagando- como você se chama mesmo?
-
Noêmia.
-
Fico feliz em conhecer uma jovem tão educada e que identifica seus clientes com
facilidade pelo nome.
-
É que seu nome me agrada. Soa muito bonito. Estevão... pronunciou a moça sem
retirar dos lábios o sorriso.
-
Conhece o rapaz Demétrius do mercado Noêmia?
-
Claro disse ela, numa cidade pequena como esta, a gente sempre conhece quase
todo mundo.
-
Poderíamos combinar de sairmos juntos num final de semana qualquer -
acrescentou Estevão, de forma natural, mal se dando conta do propósito que o
conduzia a propor aquele encontro.
-
Boa idéia - disse Noêmia - gostaria inclusive que nos honrasse com uma visita
lá em casa. Na verdade, já faz algum tempo que comentei com meus pais que
chegara um rapaz novo na cidade e que praticamente toda semana recebe inúmeras
correspondências. Eles ficaram curiosos em saber de onde você é, qual o motivo
de sua mudança para cá , e outros detalhes. Estou certa de que ficariam muito
felizes em conhecê-lo.
-
Pois bem, aqui está meu telefone. Convide Demétrius também, ele aceitando me
comunique e marcamos um encontro em sua casa.
- Ótimo, disse a moça.
-
Até mais - acrescentou Estevão retirando-se.
Ao
entrar no carro, deu-se ele conta de que suas mãos transpiravam. Não
compreendia como fora capaz de tudo aquilo. Indagar o nome da moça, e ainda por
cima propor o encontro dos três, ele, ela e o rapaz que o deixara atordoado.
Acendeu
um cigarro, deu partida no carro e pegou a estrada de volta para casa.
CAPITULO IV
Passaram-se
uns quinze dias ou mais, e o telefone como sempre permanecia silencioso.
Estevão cogitou consigo que na certa, talvez a moça houvesse simplesmente
esquecido da proposta que ele fizera. Ou do convite em si. Fosse por um motivo
ou por outro, ele decidiu-se por não pensar mais nisso. Ademais, teria que
regressar ao correio no mês seguinte e então tudo se esclareceria.
Enovelado
agora em persistentes pensamentos que insistiam em atormentá-lo, os passeios
pelo orla já não se apresentavam tão prazerosos como antes. A paisagem ainda o
encantava, bem como o mar agitado e as ondas barulhentas lhe serviam de carta
forma como acalanto. O inverno tornara-se mais intenso, e nos três últimos
dias, uma chuva fina e persistente caia quase que constantemente, e o sol
praticamente não saia de trás das nuvens.
Foram
três, quase quatro dias de um acinzentado e garoa fina. Porém ele se agasalhava
e passava grande parte do dia vagando a beira mar. Não foram poucas as vezes
que se pegou relembrando a figura do belo Demétrius. Tentava afastar de si a
memória do jovem, mas como uma miragem que emergia do nada, surgia aquele par
de olhos castanhos a brilhar naquela face jovial. E então Estevão ansiava que
chegasse logo o mês seguinte, quando teria que necessariamente regressar à
cidade, para pegar a correspondência e encomendar suas compras no mercado.
Passado
aqueles dias instáveis, finalmente o sol tornou a brilhar firme e Estevão
respirou com mais alívio.
As
noites tornaram-se longas. Ia dormir tarde e acordava sempre próximo à hora do
almoço.
Tudo
agora havia perdido o encanto primeiro de quando se mudou para aquele local. A
casa antiga, com seus móveis antiquados, conjugada ao isolamento marítimo e a
distância de trinta quilômetros de qualquer alma viva, entorpecia Estevão de
uma angústia insuportável.
Ele
tentava a todo custo desvincular-se dos sentimentos que o obsediavam, e
debatia-se com o que já sabia fatal: como na adolescência, na certa não
conseguiria passar indiferente ao que aquele jovem encantador, funcionário de
um pequeno mercado despertara nele.
“Talvez,
se ao menos eu soubesse nadar”, cogitava, poderia adquirir um barco.
Distrair-me pescando”. Outras vezes pegava-se amaldiçoando o telefone que se
mantinha silencioso.
Recusava-se
a confessar a si próprio, que caíra numa armadilha. Considerava o fato de ter
optado por aquele isolamento, e então legava a si mesmo a culpa de sua solidão.
Arrogante
e orgulhoso como sempre fora, não admitia a possibilidade de ligar para algum
parente ou conhecido que deixara para trás. Começou inclusive a acumular cartas
que lia sem pretensão de responder a nenhuma. “O que diria para aqueles que
deixei para trás. Que estou arrependido do que afirmei ser minha felicidade? Do
que frisei com entusiasmo chamando de paraíso? Não, isso não, de forma alguma”;
falava ele em voz alta para o vazio.
De
certa forma passou a agir por pura obstinação. Amargando as emoções que por
vezes as recordações de seu passado lhe traziam. Rejeitava aceitar lá em seu
íntimo que era o próprio algoz de si mesmo.
Sempre
fora assim, era de sua natureza não admitir que evitava por compulsão partilhar de possíveis alegrias
alheias as suas. Obstinado, sempre engolfou-se em um mar de pequenas vaidades, prazeres efêmeros
que lhe escapavam pelos dedos, nunca se dando a oportunidade de revelar-se de
forma autêntica a ninguém.
E
assim se passaram quinze dias de verdadeiro inferno onde outrora se
estabelecera o paraíso.
CAPITULO V
Era
agosto. O frio ainda persistia, e no terceiro dia do mês Estevão pegou do carro
e partiu para a cidade.
“Vou
primeiro ao correio depois ao mercado”, decidiu ele. Ia estrada afora
aborrecido e cansado. Fora mais de quinze dias de noites mal dormidas e dias
repletos de tédio. Além do que a angústia persistia, contrastando com a expectativa de rever Demétrius.
Não
chegara a dirigir cinco quilômetros, quando deu com um veículo parado à beira
da estrada. Um homem de seus trinta e poucos anos sinalizava pedindo que
parasse o carro. “Ainda mais essa”,
murmurou Estevão encostando o seu carro próximo ao do outro.
-
O que se passa amigo? - Indagou ele.
-
Desculpe incomodá-lo, já faz tempo que sinalizo aqui e você é o primeiro que
pára. Creio que houve algum problema com a bateria ou o motor, não sei. Poderia me dar uma carona até a
cidade.
-
Claro- disse Estevão- entre.
-
Me chamo Marcos, resido aqui na cidade, não sei que diabos foi acontecer com
meu carro, logo hoje que arrisquei ir pescar. Espero que não esteja
incomodando.
-
De forma alguma - retrucou secamente Estevão- eu estava mesmo a caminho da
cidade.
-
E então, você está de passagem, viajando para algum lugar, ou mora por aqui? -
Indagou o estranho.
-
Moro aqui perto, numa casa junto à praia.
-
Olhe amigo, sinto muito, peço desculpas mais uma vez por estar incomodando.
Aquele carro é assim, embora não seja uma lata velha, vive a me dar problemas.
-
Compreendo - acrescentou Estevão, sem
deixar transparecer a irritação com o palavreado do outro. – Onde devo
deixá-lo?
-
Próximo ao correio está ótimo, ou melhor, no posto, pouco antes do correio, se
está indo para a cidade vai passar por lá, não é mesmo?
-
Sim claro, no posto.
Rodaram
uns quinze minutos. Estevão satisfeito pelo outro ter se calado, pois não
estava a fim de trocar palavra com ninguém. Marcos porém parecia não conseguir
manter-se em silêncio, e acrescentou:
-
Como se chama mesmo?
-
Estevão.
-
Pois é Estevão, mora aqui faz muito tempo ou mudou-se recentemente? Não me
lembro de tê-lo visto antes na cidade. Você sabe como é, cidade pequena, a
maioria das pessoas findam se cruzando e sem querer a gente termina decorando o
rosto um do outro.
-
Faz dois anos que me mudei. Não venho muito à cidade. No geral uma vez por mês,
para fazer compras e pegar minha correspondência.
Marcos
era do tipo dado à indiscrição e portanto foi adiante na conversa, sem
importar-se se incomodava ou não aquele sujeito que lhe salvara de uma bela
caminhada a pé de volta à cidade.
“Enfim
o posto de gasolina”, pensou consigo Estevão parando o carro.
-
Aqui está bem? - Indagou este.
-
Está ótimo, e mais uma vez desculpe se o incomodei.
-
Não seja por isso. Até mais.
-
Até! - exclamou o estranho.
Estevão
deu-se por satisfeito ao ver-se livre do sujeito e seguiu rumo ao correio.
Chegando lá, mais uma vez foi logo avistando Noêmia atrás do balcão.
Aproximou-se e aguardou que ela percebesse sua presença.
Estava
mesmo esgotado. Sem forças para nada. Não atinava como conseguira dirigir até a
cidade, e ainda por cima com aquele sujeito a despejar todo aquele palavreado
em seus ouvidos.
Passados
alguns instantes, Noêmia deu-se conta dele no balcão e apressou-se em
atendê-lo.
-
Estevão, tentei ligar três vezes ao final do expediente nesses últimos dias mas
ninguém atendia ao telefone. Como não há secretária eletrônica não pude deixar
recado.
-
Sinto muito, costumo passear pela praia ao entardecer e na certa quando o
telefone tocou eu não estava em casa. Preciso mesmo de providenciar uma
secretária eletrônica.
-
Espere um momento que vou pegar sua correspondência, disse Noêmia.
Ela
se afastou. Ele por sua vez foi até a porta respirar um pouco de ar puro. O
correio não dispunha de ar condicionado e senti-se sufocado. Havia filas para
postagem e nunca se dera conta das inúmeras pessoas que por vezes super lotavam o pequeno prédio
do correio.
Noêmia
regressou e ele prontamente dirigiu-se
ao balcão, mal passou-lhe a correspondência ele a inquiriu:
-
E então, conseguiu combinar alguma coisa com o rapaz, o Demétrius do mercado?
-
Ah! Sim, ele achou ótima a idéia de irmos até minha casa para que você conheça
meus pais. E então podemos combinar algum passeio pela cidade. Afinal como
disse ele, ambos sabemos que você não conhece nada
por aqui. Você gostará de
conhecer alguns locais turísticos de nossa pequena cidade. Há um pequeno museu
em memória aos escravos, além de alguns pesqueiros pelos arredores, bem como uma casa noturna simples,
onde se apresenta um artista ou outro. Talvez você goste.
-
Fico agradecido Noêmia. Vou agora ao mercado e falo com ele pessoalmente. E
desta vez combinamos um dia e um horário para que você me ligue.
-
Está bem, só um momento.
Noêmia
então foi até o telefone e voltou alguns minutos depois.
-
Pronto, acabo de conversar com minha mãe, e ela disse que você e Demétrius
estão convidados a almoçar conosco no segundo domingo do mês. Passando este
domingo, o próximo.
-
Ótimo, disse Estevão, vou passar o convite para o Demétrius pessoalmente, e
caso ele não tenha nenhum compromisso ficamos assim combinados.
-
Ok! Até mais então Estevão. Aguardo-o em minha casa. Demétrius sabe onde fica,
combine com ele e esteja lá no domingo.
-
Está certo Noêmia, eu agradeço a oportunidade de conhecer sua família.
-
Ora Estevão, eu é que me sinto feliz por você aceitar o convite. Até mais
então.
- Até! - disse Estevão e retirou-se, não vendo a hora de
passar o recado para Demétrius e regressar para sua casa, a fim de recuperar as
energias.
Pressentia
que uma vez certificado de que poderia desfrutar da companhia de Demétrius em
breve. Cessaria então aquela ansiedade
que lhe perturbara por dias. E
então encontraria novamente a paz em seu pseudo-paraiso.
Chegando
ao mercado, perguntou por Demétrius a um dos funcionários, e não demorou muito
para que Estevão se visse mais uma vez perante aquele jovem que lhe atribulara
tanto o espírito nos últimos dias. “Ele é encantador mesmo, parece mais um
presente dos deuses”, disse de si para si.
Atentando
mais uma vez, não só para o rosto bem como para a compleição física do rapaz,
que por hábito trazia um avental à cintura e, apesar do frio, as mangas da
camisa arregaçada, com alguns botões abertos deixando amostra parte do peito.
-
Como tem passado Demétrius? Vim saber se minhas compras do mês já foram
selecionadas como sempre.
-
Estou bem Estevão. Já separei tudo, julgava mesmo que você viria por estes dias
no início do mês como sempre.
-
Demétrius conhece Noêmia a funcionária do correio não é mesmo?
-
Sim, ela me disse do convite para irmos à sua casa eu e você, no entanto parece
que não conseguiu se comunicar, o telefone não atendia.
-
É verdade, ela me ligou por três vezes no final do dia, e como costumo passear
pela praia neste horário, na certa não ouvi o telefone. Vou tratar de
providenciar uma secretária eletrônica.
-
Isso é bom Estevão. Vai levar as compras agora ou prefere que sejam entregues
lá?
-
Mande entregar lá por favor, não hoje. Amanhã se possível, mais uma coisa,
Noêmia combinou de nos encontrarmos em sua casa, passado este domingo no
próximo. Sua mãe estará nos aguardando disse ele. Você por acaso tem algum
compromisso?
-
Não, e fico contente em ter a oportunidade de conhecer os pais de Noêmia. Ela é
filha única o senhor sabia?
-
Não.
-
Pois é, ela já me convidou para ir até lá, mas como sabe trabalho muito aqui no
mercado. E por vezes até aos domingos para conferir os estoques. Mas garanto
que estarei livre na dia combinado.
-
Então ficamos assim ajustados, passo por aqui no domingo lhe pego por volta das
onze horas e vamos para lá. Você sabe onde ela mora não é mesmo?
-
Sim sei, não se preocupe. Estarei aguardando aqui no domingo no horário
combinado.
Pela
primeira vez Estevão estendeu a mão para o rapaz, que retribuiu o cumprimento. E trocaram assim o primeiro
aperto de mão.
Estevão
retirou-se e mal atravessou a porta, sentiu como se pisasse em nuvens. O
contato firme daquela troca de aperto de mãos confirmou mais ainda o que ele já
pressentia, deveras o rapaz se apossara de seu coração.
CAPÍTULO
VI
Regressou
Estevão para seu refúgio junto ao mar. Percorreu o caminho o mais rápido que
pode. Não via a hora de chegar em casa, comer alguma coisa, e estender-se no
sofá da sala e procurar dormir um pouco. O frio na certa contribuiria para que
após uma boa refeição, um café e um cigarro, pelo menos repousasse. Quem sabe
vendo algum filme na televisão.
Como
previra, mal se alojou no sofá e, aconchegando-se com uma manta e um cobertor
adormeceu com a T.V. ligada. Despertou próximo às seis da tarde. O sol já
desaparecia no horizonte. Espreguiçou-se e foi até a varanda como sempre. O
frio era cortante, mas seu pijama e o sobre-tudo tornava-o suportável. Esteve
alguns instantes a contemplar os últimos raios de sol e em seguida voltou para
dentro.
A
dor em seu peito amenizara, tinha certeza agora que em breve estaria na
companhia de Demétrius, e por um domingo inteiro. Respirou aliviado e pensou de
imediato: “Diabos, o que poderia eu levar como presente ou recordação para o
rapaz, sem que este tomasse isso como alguma afetação de minha parte”. Subiu
então ao quarto onde entulhara livros e outros objetos diversos e pôs-se a
vasculhar alguma coisa que fosse adequada. Lembrou-se então de um livro de bela
encadernação que ganhara de uma amiga tempos atrás e que narrava uma estória
singular. Na verdade não era bem uma estória, era mais um livro de meditações,
pensamentos ou verdadeiros provérbios de um escritor pouco conhecido.
Porém
hesitou e refletiu: “Não fica bem presentear o rapaz e deixar Noêmia sem ser presenteada. Ou os dois, ou então ela, ou
nenhum dos dois”, conclui num raciocínio lógico.
Era
característica de Estevão a discrição e o bom gosto. Bem como princípios de
etiqueta.
Tornou
a vasculhar o aposento surpreendendo-se com um
baú do qual não se dera conta. “Deveria pertencer a minha tia”, pensou
consigo. Com facilidade conseguiu remover uma pequena trava de ferro que o
lacrava. Havia inúmeros objetos nele. Livros os quais as páginas principiavam a
se esfarelar devido a traças, lenços femininos coloridos com flores, na certa
de usar no pescoço, algumas fotos antigas em pequenas molduras dentre outras
coisas. Foi quando se deu o achado. No fundo do velho baú, havia uma pequena caixa
cravada de enfeites de metal em forma de flores e pedrinhas coloridas no
centro. “Excelente!”, exclamou, “perfeito para Noêmia”.
Feliz
com os dois achados, regressou para a sala de estar, pegou o telefone e ligou
para uma loja de variedades na cidade, encomendando papéis de presente para
serem entregues no mercado, e enviados com a conta para seu endereço.
Colocou
um disco na vitrola, acendeu um cigarro, serviu-se de uma bebida e divagou
deliciado na perspectiva de que as próximas duas semanas passariam num piscar
de olhos. Em breve chegaria o domingo tão almejado.
Ansiava
ele agora pela chegada da primavera. Quando o frio amenizaria e na certa as
caminhadas a beira mar se tornariam mais prazerosas.
O
relógio de pêndulo acusou as horas, já passava das nove, quase dez. Foi para cozinha preparou alguma coisa para o
jantar. Após a refeição fumou outro cigarro e recolheu-se em seus aposentos.
Tomou um banho e em seguida foi para a cama e para surpresa sua logo adormeceu,
caindo num sono profundo. Às nove horas despertou e permaneceu na cama até mais
tarde.
Surpreendido
percebeu que a angústia que por dias lhe oprimira o peito cessara. Bem como
sobreveio um estado de entorpecimento, porém diverso do que vivera nos últimos
dias. Sentia-se agora tomado por uma sensação de alegria incontida, sem muita
excitação. Passara a tempestade e agora era como se navegasse em águas mansas e
tranqüilas. O vislumbre do domingo que desfrutaria na companhia do rapaz que
lhe arrebatara a paz e o fez regressar no passado, lá bem distante, quando
apaixonara-se pelo amigo na adolescência, não se apresentava como uma ameaça.
Mas antes como possibilidade de, quem sabe talvez desta vez, ver realizar-se em
sua vida um sonho que por anos trazia consigo num recôndito de sua alma.
Os
dias transcorreram imperturbáveis. Manteve-se Estevão naquele seu estado de
expectativa, porém livre de excessiva comoção. Antes, distraia-se mais uma vez
em seus passeios ao entardecer. Bem como desenterrou alguns livros que lera
anos atrás.
Assim
sendo, as duas semanas que o separavam do ansiado encontro transcorreram de
forma tranqüila. Lia, ouvia música, passeava a beira mar, enfim não houve tempo
para que seus pensamentos pudessem lançar dardos que ferissem suas expectativas
de gozar da companhia daquele que, no momento preencheu sua eterna carência; a
qual não confessava nem a si próprio.
CAPITULO VII
Chegou
o tão esperado domingo. Estevão despertou cedo, escolheu um traje que
considerou adequado para a ocasião. Tomou um banho, vestiu-se, fez a refeição
da manhã, pegou o carro e partiu rumo à cidade. Encontraria Demétrius no
mercado e de lá seguiriam para a casa de Noêmia. Na estrada acendeu um cigarro,
ligou o rádio do carro e seus pensamentos vagaram com o vento. Tão velozes ou
quase mais, que o veículo pela rodovia.
Por
volta das dez horas já estava na cidade. Como o encontro era às onze,
estacionou o carro na praça central e foi até uma cafeteria. Pediu um café, em
seguida sentou-se num banco solitário para passar o tempo. Embora fizesse frio
o sol brilhava e o céu era de um azul magnífico.
“Feliz,
estou deveras feliz”, pensou Estevão em voz alta. Principiou inclusive a
murmurar uma música que lhe veio a mente. Olhou para o relógio, já se
aproximava das onze. Pegou o carro e dirigiu-se para o mercado avistando de
longe Demétrius que já lá estava a aguardá-lo.
Estacionou
próximo ao rapaz que entrou no veículo e estendendo-lhe a mão disse um bom dia.
Estevão retribuiu o aperto de mão e partiram para a casa de Noêmia.
Permaneceram
algum tempo em silêncio e então Estevão interrogou Demétrius:
-
Já estamos perto?
-
Basta entrar a direita e pode estacionar na segunda quadra – acrescentou este.
Estevão
estacionou, era o número cinqüenta e sete. Uma casa simples, de pintura
discreta e um pequeno jardim junto ao portão de entrada.
-
É aqui mesmo devem estar nos aguardando -
disse Demétrius.
Desceram
do carro e Estevão tocou a campainha. Noêmia veio recebê-los festiva no portão.
-
Vamos entrem, papai e mamãe estão aguardando vocês - disse a moça.
Os
dois atravessaram o portão e seguindo Noêmia entraram na casa.
Demétrius
já era conhecido. Noêmia então adiantou-se e pegando Estevão pelo braço,
conduziu-o ao centro da sala dizendo:
-
Mamãe, papai, este é Estevão de quem lhes falei.
Em
seguida, dirigindo-se a um homem sentado numa poltrona próxima aos pais
acrescentou:
-
Estevão, este aqui é Marcos, meu namorado.
Estevão
teve um sobressalto, ali na sua frente estava aquele desagradável sujeito ao
qual dera carona dias atrás. Recuperando-se do impacto, estendeu a mão e
cumprimentou o fulano.
Este
por sua vez esbravejou:
-
Ora vejam só se não é o mesmo que há poucos dias atrás me socorreu na estrada,
quando o maldito do meu carro pifou.
-
Como está você? - Indagou Estevão.
-
É um prazer recebê-lo na casa de meus sogros. E você Demétrius como tem
passado? Acrescentou Marcos.
-
Eu estou bem Marcos, obrigado. - Respondeu o rapaz.
Estevão
percebeu nas feições do jovem um certo desagrado.
Noêmia
aceitara a proposta de namoro de Marcos a poucos dias. Demétrius não imaginara
encontrar ali aquele homem que era seu conhecido por fazer compras no mercado,
bem como pelo falatório que corria solto pela cidade a respeito de ser dado a
bajular inúmeras mulheres, e segundo alguns dado também a companhias e hábitos estranhos para os
habitantes da pacata cidade.
Dona
Gertrudes, mãe de Noêmia mostrou-se solicita e por natureza expansiva, encantou
Estevão com tiradas pitorescas sobre um homem elegante, vindo na certa de
alguma cidade bem mais desenvolvida que aquela e resolveu enfiar-se naquele fim
de mundo. Estevão reparou que próximo a seu lugar no sofá havia uma revista de
palavras cruzadas , bem como um romance o qual não consegui ler o título. Dona
Gertrudes ao perceber que seu olhar dirigiu-se ao livro comentou:
-
É algo assim no estilo melodramático de Best Sellers americanos, como As Vinhas
da Ira ou Os Capitães e os Reis, não sei se lhe agradaria?
-
Estevão respondeu:
-
Na certa que sim.
Já
seu Miguel, o pai de Noêmia, mostrou-se reservado e restringiu-se a cumprimentar Estevão e indicar-lhe um lugar
numa outra poltrona, de frente para a de Marcos.
Demétrius
acomodou-se no sofá junto a Noêmia e seus pais.
Graças
ao bom humor de dona Gertrudes, tudo transcorreu de forma que das onze passou
para o meio dia e a dona da casa anunciou que precisava ir para a cozinha caso
contrário, o almoço não sairia antes das duas horas.
Com
sua saída Marcos dirigiu-se a Estevão e atropelou com perguntas de toda ordem.
De onde vinha, se era casado ou separado, se tinha filhos, o que era feito de
sua família. Perguntas as quais Estevão respondia com evasivas. não mentindo,
porém por outro lado, tentando manter o mais que podia sua discrição.
O
almoço foi servido todos comeram em silêncio. “Graças a Deus”, pensou consigo
Estevão, “ainda bem que esse tal de Marcos respeita ao menos a hora das
refeições.
Evitava
o máximo que podia olhar para Demétrius. Que não pareceu de forma alguma
incomodado com a presença de Marcos, a não ser quando da chegada.
Após
o almoço, dona Gertrudes serviu um café e Estevão pediu licença para fumar seu
cigarro lá fora no jardim.
Voltou
e foi logo participando que precisava regressar a sua casa, para espanto de
Noêmia, que adiantando-se em sua direção comentou excitada:
-
Mas Estevão, e o passeio que combinamos com Demétrius? Marcos achou ótima a
idéia e não se importa de irmos todos juntos.
-
Sinto muito Noêmia,- retrucou Estevão - Deveras preciso ir; aguardo um
telefonema para esta tarde portanto fica para um outro dia o passeio. E creio
também que eu e Demétrius só haveríamos de impossibilitar que você e Marcos
desfrutem dessa bela tarde de domingo. E acrescentando, dirigiu-se a Demétrius
– Não é mesmo Demétrius?
-
Concordo Estevão - e dirigindo-se a Noêmia disse, - Eu também não me Importo de
cancelar o passeio.
-
Bem, se é assim, nada posso fazer? – O que acha Marcos?
-
Ora Noêmia, haverá outras oportunidades. Já que cancelam o passeio concordo que
desfrutemos nós dessa bela tarde de domingo.
Estevão
despediu-se de todos e para sua surpresa, Demétrius fez o mesmo, dizendo que o
acompanharia, queria uma carona para casa.
CAPITULO
VIII
Estevão
deu carona para Demétrius até sua casa e em seguida seguiu estrada a fora rumo
a seu retiro a beira mar. Deixara a casa de Noêmia por volta das três horas e
lá pelas cinco já estava de volta novamente com a alma conturbada para sua
morada. Fez o caminho de regresso sentindo que a cada quilômetro que avançava
pela rodovia, sua angústia regressava. Inundado
de tristeza, com sombras em sua alma. Foi nesse estado de profundo
abatimento que deu volta a chave e abriu a porta da sala de estar. Fechando-a
atrás de si e lançando-se no sofá.
A
frustração o dominava, tudo tinha saído errado. Aquele maldito Marcos tinha que
surgir como um espectro assombroso,
afastando de seu caminho a possibilidade de realizar o que com tanta ânsia
aguardara.
Fora
por água abaixo a oportunidade de desfrutar da tão ansiada e agradável
companhia de Demétrius. Os presentes que levara consigo, trouxe-os de volta e
deixou no banco traseiro do carro.
E mais uma vez seus pensamentos se enovelaram.
E mais uma vez sentiu como todo seu ser,
despencasse abismo abaixo. Indo rumo ao vale tenebroso da solidão e da
melancolia mórbida, que o inundara dias atrás.
Quando
haveria agora outra oportunidade de reencontrar com o jovem e permanecer a seu
lado, ainda que acompanhado por Noêmia.
Era
fato que não pretendia Estevão investir junto ao rapaz com declarações de
sentimentos de amizade profunda, ou coisa do gênero. De forma alguma, não era
isso que trazia em mente. Queria sim era a oportunidade de aproximando-se dele,
ganhar sua estima e confiança, para que pudessem compartilhar momentos juntos.
Estevão
haveria de convidá-lo a adentrar na intimidade de sua casa, dividir com ele
seus gostos pela música, por livros quem sabe? Descobriria seus gostos e
desejos e tentaria fazer com que esses se realizassem.
Pobre
Estevão, mais uma vez em sua vida estava como que flechado por uma seta
envenenada, que lhe contaminava a alma e o coração.
Como
há muitos anos atrás, lá pelos seus dezoito anos, quando sua vida desabrochava
para a juventude, essa mesma seta o feriu, e sentiu murchar dentro de si, o que
entendia ser amor.
Mais
tarde, antes de vir parar naquele local deserto junto ao mar, julgou que viveu
uma sandice. Uma paixão doentia.
E
no momento tudo parecia querer repetir-se. E ele não se considerava capaz de
suportar uma segunda vez o que enterrara num passado distante, e julgava esquecido.
Não
se considerava capaz de enfrentar mais uma vez aquele pântano pelo qual por
pouco não foi tragado.
Seu
coração não obedecia sua razão e por mais que se debatesse não conseguia
afastar de si aquele sentimento intenso de ter a seu lado o belo rapaz, que
embora não muito distante dele, parecia inacessível, como uma estrela a brilhar
longe lá no céu.
E
permaneceu envolto nesse sentimentalismo exacerbado por dias. Foi quando uma
luz brilhou na escuridão do túnel. “No próximo mês”, pensou consigo próprio,
“telefonarei para o mercado na cidade e pedirei para que o Demétrius mesmo
venha pessoalmente fazer a entrega de meus mantimentos. Quando ele chegar aqui
proporei que me leve a passear para conhecer a cidade. Usarei como desculpa não
ter dado certo nosso combinado com Noêmia”.
Foi
o que lhe pareceu mais sensato fazer. Arriscar que o jovem não se negasse a
isso. E ele acreditava que não havia motivos para uma recusa
por parte do rapaz.
Esse
raciocínio acalmou um pouco seus sentimentos, conseguiu de certa forma
tranqüilizar-se, acalentando no peito aquela esperança.
Havia
somente quinze dias pela frente para que pusesse em prática o planejado.
Bastava somente ter paciência e tudo se realizaria dentro dos anseios de seu
coração.
CAPÍTULO IX
Passaram-se
os quinze dias e Estevão então telefonou para o mercado e solicitou que
Demétrius viesse pessoalmente à sua casa para a entrega mensal de seus mantimentos.
No
dia seguinte ele acordou, tomou seu café da manhã e aguardou a chegada do
rapaz. Lá pelas dez horas da manhã ouviu o barulho de uma caminhonete se
aproximando. Saiu para a varanda e aguardou radiante a chegada do entregador.
Demétrius
desceu da caminhonete e conduziu os mantimentos para o interior da cozinha pela
porta dos fundos. Terminada a entrega Estevão lhe deu uma gorjeta e como
planejara acrescentou com certa displicência:
-
Demétrius, queria lhe pedir um favor.
-
Diga Estevão - consentiu o rapaz.
-
Gostaria que combinássemos um dia para
que você me levasse a passear e conhecer melhor a cidade, uma vez que
não foi possível o nosso
acordo com Noêmia dias atrás.
-
Claro Estevão - respondeu Demétrius -
que tal no próximo domingo.
-
Ótimo, para mim está ótimo. Encontro você na praça central às dez da manhã,
está bem assim?
-
Sem dúvida, combinado.
Despediram-se
os dois e trocaram como de costume um aperto de mão.
Estevão
viu a caminhonete se afastar com o coração a transbordar de alegria. Desta vez,
daria certo, levaria inclusive o livro de presente como planejara. Passeariam
juntos, visitariam alguns locais na cidade, e antes de regressar Estevão o
convidaria para aparecer em sua casa para um bate-papo, beber alguma coisa,
enfim passar o tempo e se conhecerem melhor. Diria algo assim como: “Gostaria
que nos tornássemos bons amigos”.
E
mais uma vez seu coração oscilou da angústia e desespero para uma alegria
arrebatadora. E já se imaginava a passar finais de semana na companhia do
rapaz. Levaria ele pela costa. Subiriam juntos nos rochedos. Ele na certa bom
nadador haveria de apreciar os locais onde as ondas se espalhavam tranqüilas
pela orla marinha.
E
foram dias de serenidade entre a entrega dos mantimentos e a chegada do domingo. Como o combinado, encontraram-se
ambos, Estevão e Demétrius na praça central às dez da manhã, e este último
conduziu Estevão por diversos locais da cidade, que considerou dignos de serem
visitados por um turista. Levou-o ao museu de escravos, ao estádio de esportes,
a um bosque com alamedas e bancos onde podia-se apreciar as árvores e inclusive
pássaros raros da região. Disse haver um cinema só que fechara a certo tempo já
e não sabia se reabriria. Mostrou-lhe um estabelecimento fechado com portas de madeira e fachada de azulejos
estampadas e disse tratar-se de uma casa noturna só para maiores de idade. Um
local onde casais se encontravam à noite para assistir algum show de artistas,
bem como bebia-se e dançava-se.
Estevão
demonstrou-se encantado com tudo e como Demétrius disse que não havia mais o
que visitar e o passeio podia dar-se por terminado, este arriscou e fez a ele a
proposta que planejara. Convidou-o a ir até sua casa no próximo final de semana
caso estivesse disponível, para que conversassem um pouco mais, bebessem alguma
coisa e conhecesse a bela paisagem onde encontrava-se instalada sua casa. Deu-lhe
também o livro, dizendo que era uma forma de retribuir a gentileza do passeio.
Demétrius assentiu, e disse que se não fosse no final de semana, telefonaria
num dia que folgasse no mercado para saber se seria possível a visita. Estevão
não pôs objeção, acrescentando:
-
Tudo bem, e se souber nadar pode ir preparado. Tratarei de conseguir em breve
um barco de pesca assim nos divertimos um pouco mais.
Despediram-se
e Estevão ficou sentado no carro, olhando o rapaz que se afastava na certa rumo
a sua casa.
Depois
partiu rumo a rodovia, baixando o capô do carro conversível.
Acendeu um cigarro, ligou o rádio
e deixou que o vento soprasse por seus
cabelos e seu rosto.
Queria
o sol e o céu azul sobre sua cabeça, e a
música parecia embalar aquilo que tinha em mente, de que este era o dia mais
feliz de sua vida. Disse consigo próprio: “Creio que Deus lá no alto lembrou-se
de mim, ouviu e atendeu após tantos anos meus pedidos, o anseio de meu coração.
Creio que agora compreendo o que é o amor.
Ao
chegar em sua casa, deixou o carro e antes mesmo de entrar dirigiu-se para os
rochedos onde as ondas rebentavam estrondosamente. Subiu ao alto de uma delas e
soltou um brado de triunfo. Seu coração parecia querer sair do peito.
“Agora
serei feliz, encontrei o amor e desta vez ele não escapará de minhas mãos.
Demétrius ainda é jovem, na certa se casará e permanecerá aqui, a trinta
quilômetros de distância e seremos para sempre amigos inseparáveis”, foi o que
disse de si para si.
A
essa altura, talvez o leitor curiosos se pergunte da real natureza dos
sentimentos que ligavam Estevão àquele rapaz. Indagar-se-á ainda: “ora, não
quer ele tê-lo nos braços, acariciá-lo ou beijá-lo? Não sendo completamente
ingênuo aquele que acompanha estas linhas aqui traçadas com cuidado, deve ter
percebido que ressaltei certas características da personalidade de Estevão, que
de certa forma não deixa sem resposta essa questão.
Quando
lhe atribui vaidade, arrogância, orgulho e egoísmo em partilhar alegrias, já dever-se-ia dar-se conta o
leitor de que nosso personagem, possui deveras conflitos de ordem profunda; não
diria moral, pois não vejo nada que o desmereça devido ao fato de sendo homem
ver-se atraído por outro homem. Mas
acrescentaria ainda um atributo ao personagem, que seria a leviandade que foi
característica sua por longo tempo, ao menos até refugiar-se no que de início
chamou seu paraíso.
Não
poderia ser o amor, paixão ou seja lá o nome que se dê ao sentimento que o
ligou ao rapaz Demétrius, um instrumento pelo qual seria possível resgatar-se
de todos esses atributos adversos a uma personalidade saudável. Ou porque não
dizer, tornar-se um homem de caráter, no sentido estrito da palavra, como outro
qualquer o seria?
CAPÍTULO X
Passada
uma semana após Demétrius ter feito a entrega à domicílio na casa de Estevão, o
telefone toca, este atende e ouve uma voz feminina do outro lado da linha:
-
Estevão, é você?
-
Sim é Estevão quem fala?
-
Sou eu, Noêmia você não apareceu no início do mês para pegar sua
correspondência então arrisquei ligar.
-
Eu agradeço muito Noêmia, na verdade já estamos quase na segunda semana de
setembro e me esqueci completamente de ir até o correio mas...
-
Ouça Estevão, interrompeu a moça do outro lado da linha, na verdade não estou
ligando só por esse motivo. Gostaria muito de que marcássemos um encontro para
podermos conversar. Na verdade preciso esclarecer o que se passou naquele
domingo lá em casa.
-
Creio que não haja nada a ser esclarecido – disse Estevão.
-
Por favor, suplico-lhe que me encontre assim que puder aqui na cidade após as
dezessete horas, quando saio do correio. Preciso mesmo falar com você.
-
Está bem, pode ser na próxima segunda?
-
Para mim está bem, ficamos assim combinados.
-
Combinado Noêmia.
-
Até Estevão
-
Até!
Estevão pôs o fone no
gancho e ficou a cismar sobre que assunto queria Noêmia conversar. O que haveria para ser esclarecido. Fora tudo
tão óbvio. Ela havia se enamorado de Marcos, e ele nada mais fizera que
simplesmente dispensar o passeio para não atrapalhar os dois de usufruir uma
bela tarde de domingo em início de namoro. Ficou deveras curioso, mas sem tanto
inquietação.
A
felicidade invadira sua vida, e ele a recebeu de braços abertos. Não via a hora
de receber Demétrius em sua casa. Já começara inclusive a tomar certas
providências. Tratou de fazer uma limpeza geral, organizar de forma mais cômoda
os móveis. Bem como ocupou-se em treinar mais na cozinha. Preparar algum prato
especial.
Nisso
os dias se passaram, chegou a segunda-feira e Estevão, de acordo. Com o
combinado com Noêmia, foi encontrá-la. Ao chegar na cidade, de longe a avistou parada junto à saída do
correio. Ela assim que o viu aproximou-se, entrou no carro e foi logo dizendo:
-
Vamos para um lugar sossegado e discreto onde possamos conversar. Há um bosque
aqui perto, você pode estacionar lá e poderemos conversar por algum tempo.
Tenho algo importante para lhe dizer e não quero que isso passe de hoje.
Ele
seguiu suas instruções e chegando ao bosque estacionou. Noêmia parecia nervosa,
sua voz era trêmula, e o sorriso de sempre desaparecera de seu rosto.
-
Bem, sou todo ouvidos – disse Estevão.
-
É o seguinte – iniciou Noêmia – deu-se um terrível mal entendido. Eu convidei aquele sujeito, o Marcos, para ir em
casa no mesmo domingo que você, para ver qual seria sua reação. Você foi gentil
comigo no correio. Disse inclusive que lhe tratara pelo nome de forma
inesperada e sentiu-se lisonjeado por isso. Desde aquele dia comecei a
sentir-me apaixonada por você. Não que não houvesse sentido nada antes. Logo
nas primeiras vezes em que você foi ao correio já senti certa por você certa
atração. Afinal é um homem bonito e atraente.
Só
não sabia como abordá-lo. Foi então que surgiu a possibilidade do passeio. Você
sempre me pareceu um homem rico e seguro de si, e eu de minha parte temi lhe
dizer de imediato o que sentia. Então pensei comigo, se ele me convidou para um
passeio talvez tenha algum interesse por mim.
Porém
permaneci em dúvida, e naquele domingo, quando convidei Marcos a ir lá em casa, foi com o objetivo de testá-lo.
Queria sondar se sentiria algum ciúme de mim, mas pelo que percebi deu tudo
errado. Fui mesmo mal interpretada.
Estevão
não sabia o que dizer. Estava completamente despreparado para ouvir tudo
aquilo. Sentiu-se frágil e inseguro, nenhuma palavra lhe vinha em mente que
servisse de resposta àquela confissão amorosa.
Apoiou
a cabeça no volante do carro, ficou calado por alguns minutos, em seguida olhou
Noêmia fixamente nos olhos e disse:
-
Infelizmente Noêmia, sinto muito, seus
sentimentos não são correspondidos. Apesar de ser um homem desimpedido seria
incapaz de iludir alguém que me faça uma declaração como esta que você fez. Eu
gosto muito de você, mas não passa de amizade, nada mais que isso.
-
Mas talvez Estevão...
-
Não Noêmia, não insista. Continue com seu namoro com o Marcos e procure ser
feliz. Esqueça-me é o que lhe tenho a dizer.
-
Na verdade já rompi com o Marcos. Disse
inclusive a ele que preferia sua
companhia a dele naquele domingo, o que o deixou bastante irado. Ele é do tipo
que não aceita um não de uma mulher quando está interessado. E eu cai na
besteira de dizer que queria namorá-lo, para ver se lhe despertaria ciúmes em
você.
Agora
não sei o que pode acontecer. Marcos é do tipo dado a se vingar. E preocupo-me
que se não descontar sua ira sobre mim, talvez a desconte em você.
-
Não se preocupe comigo. Não romperei nossa amizade devido a esse incidente, a
menos que você prefira assim.
-
Na verdade, já estava preparada para ouvir um não de sua parte, mas, precisava
confessar meus sentimentos. Julguei que talvez como já o conheço de vista há
dois anos, e sempre sozinho, tivesse alguma chance.
Continuaremos
a nos ver quando for ao correio. Isso passará, sei que passará. Concluiu ela. E
descendo co carro desapareceu por entre as árvores do bosque.
Estevão
permaneceu naquele local por algum tempo, absorto em seus pensamentos,
intrigado com as peças que o destino vivia lhe pregando. Sentia pena da moça
que possuía um sorriso tão meigo e encantador. Mas não tornaria a envolver-se
com mulher alguma nunca mais. Fizera isso no passado e jurara a si mesmo não
cair mais nessa.
No
início da terceira semana de setembro. Numa terça-feira, Estevão estava nos
fundos de sua casa revolvendo a terra de alguns vasos de plantas que adquirira
para embelezar o ambiente austero de sua casa, quando o telefone tocou, e ele,
quase que intuitivamente deduziu quem era.
-
Alô!
-
Alô! Estevão?
-
Sim.
-
É Demétrius, estou ligando para avisar que folgo no próximo final de semana.
Estou pensando em ir até aí, tudo bem para você?
-
Para mim tudo bem, estarei lhe esperando.
-
Procurarei não chegar muito cedo para não tirá-lo da cama, certo?
-
Não se preocupe com isso, pode vir estarei lhe aguardando.
-
Então até lá.
-
Até.
Finalmente
a primeira visita já estava confirmada. O tempo se responsabilizaria pelo
resto.
Estevão
sabia ser gentil e atencioso sem afetação. Bem como, desde que Demétrius não
buscasse algo além daquilo que estava disposto a lhe proporcionar, tudo seria
um mar de rosas. E esse algo ao qual se referia Estevão, era o sexo.
Esta
era a segunda vez que vivenciava essa experiência: paixão completamente
desvinculada de atração sexual, ou melhor visando o sexo.
O
que não impediu que até aquela altura tivesse levado uma vida promíscua,
justamente no que se refere ao sexo. Chegando mesmo a contrair doenças
venéreas.
Mas
agora, mais uma vez afirmava para si próprio, tudo seria diferente, sua vida
ganhava um novo rumo. Se chegara a pensar em suicídio no passado, isso foi
devido a rejeição perante o sentimento de verdadeira adoração que dedicou
àquele primeiro amigo. Agora seria diferente, não seria necessário nenhuma
confissão de sua parte. Ser correspondido ou não em sua paixão era algo que não
lhe perturbava. Desde que não fosse legado às traças em seu novo sentimento,
não haveria de sentir ciúme algum, ou ter necessidade de ouvir palavras por
parte do outro que tornasse óbvio ser correspondido.
E
acreditava não idealizar coisa alguma, tinha em mente inclusive, que renunciar
a ser correspondido, tornava mais nobre ainda seus sentimentos por Demétrius.
Mais
uma vez penso que o leitor venha a conjeturar a possibilidade de se vivenciar
algo semelhante ao que insisto atribuir a meu personagem. Esteja tranqüilo o
leitor, não tornarei a ficar pondo o dedo nessa ferida, que insisto em querer
cicatrizar aprofundando-me nos mistérios que abriga o coração humano.
CAPÍTULO XI
No
final de semana, na manhã de sábado, Demétrius chega à casa de Estevão.
Este
já o aguardava e foi recebê-lo com entusiasmo à porta.
-
Veio com a caminhonete do mercado ou de ônibus rodoviário?
-
Com a caminhonete. Tomei-a emprestado por este final de semana.
-
E volta quando?
-
Se não atrapalhar em nada, voltarei só no domingo à tarde.
-
Na certa não atrapalhará. Será um prazer tê-lo aqui até o domingo. Concluiu
Estevão.
Demétrius
sentiu-se contente em ser assim tão bem recebido. Quanto a Estevão não
continha-se em demonstrar a alegria de tê-lo em sua casa, dizendo que era a
primeira visita que recebia em dois anos desde que instalara-se ali. Conduziu o
rapaz pela casa, familarizando-o com ela.
-
Poderá dormir neste quarto próximo ao meu. Preparei-o recentemente para
hóspedes e você é o primeiro.
Demétrius
gostou da casa. Embora antiga era aconchegante e confortável. Possuía calefação
e água quente nas torneiras. Isso era bom, pois embora se aproximasse a
primavera ainda fazia frio. Olhou com atenção tudo que Estevão lhe mostrava,
desde os quadros, até as cortinas e os tapetes. E ficou feliz com o amigo que
se mostrava tão satisfeito em recebê-lo em sua casa.
-
Mais tarde, após comermos alguma coisa, vou levá-lo para conhecer a paisagem
costeira - disse Estevão – sei que vai apreciá-la. Apesar de ainda estarmos no
inverno, o tempo está firme e você poderá ver quão magnífico é o pôr-do-sol
aqui. Podemos contemplá-lo por cima dos rochedos próximo ao mar. Em breve chega
a primavera, o tempo esquentará um pouco mais e você poderá nadar, bem
como estou providenciando um barco para
que se possa pescar. Hoje sugiro que você se acomode em seu quarto. Em seguida
comeremos alguma coisa, e descansaremos um pouco na sala. Depois o levarei para
começar a conhecer os arredores. Desde a mata próxima à rodovia até a orla
marítima repleta de rochedos. Bem como a praia onde as ondas morrem na areia,
sem debaterem-se com a violência com que se chocam contra as elevações de
pedra.
Para
mim este é um lugar paradisíaco, onde pode-se desfrutar de paz e usufruir de
uma paisagem deveras maravilhosa.
É
uma amizade o que começa a nascer entre nós, e estou certo que perdurará por
muito tempo. Agora vou deixá-lo a vontade para instalar-se no quarto e em seguida poderemos conversar um pouco na sala
até sair o almoço.
Espero
que goste de minha comida, como percebeu não tenho empregados e preparo eu
mesmo as refeições.
-
Não se preocupe com isso Estevão, o que você preparar estará ótimo para mim.
E
assim, Estevão e Demétrius principiaram numa amizade que parecia para ambos
longa e duradoura. Este foi o primeiro de inúmeros finais de semana que
desfrutaram juntos naquele local que deveras proporcionava paz e tranqüilidade
para qualquer um que não exigisse nada além de uma natureza ainda intocada,
como que preservada para contemplação, e somente para isso.
Passou-se
o sábado e logo chegou a tarde do domingo e Demétrius regressou à cidade.
Estava feliz por haver aceito o convite de Estevão. Foi mesmo um agradável
final de semana e a companhia do novo amigo despertou nele um sentimento
fraterno. Sim, Estevão poderia mesmo ser um irmão que nunca teve. “Apesar de
ser mais velho que eu, trata-me como se fôssemos de uma mesma idade,e tem uma
conversa agradável, além de conceder-me espaço para dizer o que penso.
Imaginava-o uma pessoa austera que retirara-se para essa pequena cidade,
trazendo consigo o despreza daqueles que se consideram superiores e mais cultos
que as pessoas das pequenas cidades interioranas. Mas vejo que me enganei”, foi
o que deduziu consigo próprio Demétrius ao regressar para a cidade.
Estevão
por sua vez estava feliz e agora, mais que nunca, sentia-se seguro de que
encontrara em Demétrius o que sempre esperou encontrar em um outro homem.
Segurança e lealdade, além de uma possível devoção em amizade sincera, despida
de interesses que tinha para si mundanos, como dinheiro e sexo.
Já
adentrara os trinta, e viu naquele jovem de dezoito, a possibilidade de dividir
o que considerava seu tesouro. Seus sentimentos afetivos, seus conhecimentos, o
que acumulara com o tempo e porque não dizer também sua fé e esperança. Não só
num Deus, mas também no próprio homem. Era através da amizade com Demétrius que
ele acreditava poder romper a solidão e o desprezo que sentia para consigo próprio,
pois foi este o legado que trouxe consigo
da adolescência para a vida adulta.
Não
tinha idéia porém do que o destino reservava ainda para ele. E não se Imaginava
sofrendo dor maior do que já havia sofrido.
Porém,
o destino do homem lhe é velado, e Estevão que se assentava num assento
confortável que ora a vida lhe proporcionava, acreditava que jamais provaria
outra vez dos reveses da existência.
Estava
convencido de que já sofrera o auge do sofrimento e agora a sorte lhe estendia
os braços e a vida o acolhia naquilo que lhe era por métrica de um ideal, a sua
amizade por Demétrius, medida de felicidade plena. Deus realmente lhe queria
bem lá nas alturas, foi a conclusão a que chegou.
CAPÍTULO XII
O
tempo passou, mais dois anos se consumaram e Estevão e Demétrius desfrutavam
daquela amizade que qualificaria como leal e altruísta.
Noêmia
continuava trabalhando no correio e vez por outra, ou melhor quase todo mês
tinha contato com Estevão que ia até lá para saber de sua correspondência.
O
tal do Marcos procurava Noêmia uma vez ou outra, não desistindo de quem na
certa, como dizia ele: “era a mulher de sua vida mas ela não se dava conta
disso”. Se acaso cruzava com Estevão evitava-o inclusive no olhar, não por
covardia, ao contrário pelo ódio que trazia consigo, mantendo contra este uma
sede implacável de vingança.
Foi
então que o pai de Noêmia, dono de uma loja de tecidos na cidade veio à
falência. O pobre não suportou o baque, e para piorar a situação teve um
enfarto repentino.
Noêmia
e sua mãe Gertrudes entraram em desespero. A quem recorrer. Noêmia lembrou-se
de Estevão, não por ser rico, mas porque sondava a generosidade de seu coração.
Ligou
para sua casa, a essa altura ele já providenciara a secretária eletrônica para
o telefone.
Era
verão e quando Noêmia ligou o telefone acusava que deixa-se recado, logo
deduziu que ele deveria estar a fazer seu rotineiro passeio pela orla.
Não
hesitou em pedir a este que entrasse em
contato com ela no dia e horário que deixara marcado na secretária eletrônica.
Ao
regressar de seu passeio, Estevão olhou as cartas que se amontoavam e pensou
consigo: “qualquer hora seleciono alguma e respondo, não por saudade, mas sim por
consideração”. Em seguida lembrou-se de verificar se havia recados na
secretária eletrônica e para surpresa sua ouviu a gravação deixada por Noêmia.
Era
uma quarta-feira e ela marcara o encontro para o dia seguinte. Intrigado pensou
consigo próprio: “não é possível que ela venha a insistir naquele assunto de
romance entre nós. Irei ao encontro e desvendo esse mistério, tanto tempo sem
me procurar e agora marca um encontro assim, de um dia para outro. Amanhã
estarei lá na porta do correio as dezessete horas como da outra vez”.
Foi
para a cozinha verificar o que prepararia para o jantar e disse consigo mesmo:
“que maravilha, não esperava despertar em Demétrius o gosto pela literatura, no
entanto já me tomou emprestado quatro livros e disse querer ler outro”. Esse
pensamento lhe alegrou e entusiasmado decidiu preparar o jantar ouvindo música.
No próximo domingo Demétrius viria vê-lo e na certa tocaria no assunto da pesca
novamente. Estevão pensou, vou adquirir um barco pequeno com alternativa de remo
e motor. Será mesmo prazeroso ir até alto mar ver se pescamos algo.
Havia
adquirido um livro que considerou verdadeira raridade no mercado, numa loja da
cidade, e cogitou: “essa cidade, ainda que seja num fim de mundo, bem que dá
acesso ao cidadão meios de consumo de alto nível”.
Após
o jantar, como sempre fumou seu cigarro e o que lhe ocupava a mente então era o
telefonema de Noêmia. “Não é possível”, disse consigo mesmo, “isso na certa me
custará uma noite de insônia”. Por mais que refletisse na questão não conseguia
atinar qual seria o motivo daquele encontro. A única coisa que lhe ocorria era
a reincidência de Noêmia em outra declaração de amor. Por outro lado,
considerava-a sensata, e ele foi honesto e franco, deixando claro que entre
eles não haveria jamais nada além de amizade.
Lembrou-se
que não tomara banho pela manhã e apagando o cigarro no cinzeiro, subiu as
escadas e foi direto para o chuveiro. Ao sair do banho foi como previra; não
sabia se lia, via T.V., ouvia música... pois em seu pensamento regressava a voz
de Noêmia ao telefone. Ela parecia ter a voz grave, séria no recado. “Terá
acontecido algo em relação àquele sujeito, o Marcos. Não é possível, ele não
seria capaz de fazer qualquer mal a mulher que se diz apaixonado”, refletiu
consigo mesmo.
Olhou
o relógio e já ia dando dez horas. “Vou desligar as luzes e me deitar talvez
durma”. Desligou as luzes e foi para a cama, onde sentou-se e com o abajur
ligado acendeu um último cigarro. Voltou a considerar o caso do telefonema. Do
que poderia se tratar? Qual seria o motivo de uma ligação assim repentina
depois de tão longo silêncio?”Apagou a luz do abajur, o cigarro findara e
deitou-se. Como deduzira o sono não lhe
vinha. Lembrou-se do livro que comprara, reacendeu a luz do abajur e tentou dar
continuidade a leitura. Mas seu pensamento insistia em regressar para a questão
incômoda do telefonema, o que o deixou irritado.
Olhou
novamente as horas no despertador e já passava da meia-noite. Decidiu-se então
descer para a sala, para ouvir música e ver se assim se concentrava na leitura.
As
músicas que vinham do rádio eram agradáveis, porém não conseguia fixar-se no
livro. Deixara o maço de cigarros no quarto. Subiu, pegou-o e desceu decidido a
preparar um café, ouvir música, fumar e já que a noite era de verão dar uma
caminhada pela praia.
Preparado
o café, serviu-se de uma xícara e degustando sossegado seu cigarro a cada gole
de café, permaneceu sentado numa poltrona da sala por longo tempo. Depois, saiu
para a varanda e contemplou o céu estrelado e caminhando para a esquerda
avistou o mar.
A
noite estava agradável, não fazia muito calor e decidiu-se em caminhar um pouco
pela praia, pois a lua brilhava lá no alto convidativa.
“Faz
pelo menos uns vinte dias que não vejo Demétrius. Deve estar trabalhando
muito”, pensou consigo, “e estudando também”. Não perguntara ainda a ele se
pretendia fazer algum curso superior. Que formação gostaria deter, no que
aplicaria seus estudos, em que pensava se formar.
“Como é terrível a
insônia” refletiu, “a noite se torna longa, como se o dia se recusasse a raiar.
E depois vem o esgotamento, caso não se durma pelo menos um pouco durante o
dia”, o que na certa seria seu caso.
Sabia
que o dia haveria de raiar e ela persistiria com o pensamento a divagar no misterioso telefonema de Noêmia.
Haveria
de dirigir esgotado até a cidade, teria que ser cauteloso.
Regressou
para casa pois sentia-se cansado e já havia percorrido boa parte da praia. Seu
relógio marcava quase duas da madrugada.
Entrou
em casa e sentiu fome, “antes assim”, pensou consigo, pelo menos não
amanhecerei sem energias para nada. Foi para a cozinha preparar um lanche e
tomar um pouco de leite.
Ligou
novamente o rádio, a música pelo menos distraia um pouco a mente. Ao voltar
para a sala com o sanduíche, desligou o rádio e decidiu-se pela T.V. Encontrou
um filme que pareceu-lhe interessante e que prendeu sua atenção. Ao terminar o
filme, olhou para o cinzeiro deu-se conta de
que fumara um meio maço de cigarros. O relógio de pêndulo acusava cinco
da manhã.
“Vou
tomar um banho” ,decidiu , “depois aguardo até as oito horas e ligo para Noêmia
para saber o que se passa”.
Tomado
o banho, vestiu-se e aguardou impaciente ouvindo música o raiar do dia. Não
recebia jornal ali, acompanhava os noticiários de T.V. e se dava por
satisfeito. O dia raiou e ele regressou a mais uma caminhada pela praia.
Próximo das sete horas voltou à casa e tomou o café da manhã. As oito em ponto
ligou para Noêmia em sua casa. Esta atendeu ao telefone e disse de forma lacônica que era necessário que se
falassem pessoalmente. Ele então disse que as dezessete horas a encontraria na
saída do correio.
CAPÍTULO
XIII
Nenhum comentário:
Postar um comentário