domingo, 20 de março de 2016

FILHOS DE CAIM


“Ouve a minha voz...
escutai as minhas palavras: eu matei um homem...
e um adolescente...  Caim será vingado sete vezes,
mas...serei setenta vezes sete”.

                                             Do Livro do Gênesis


     Como sempre logo ao escurecer reuniam-se os quatro irmãos ao redor da mesa de jantar e servidos pelo empregado da casa comiam em silêncio. Após a refeição e retirados da mesa os pratos ainda por alguns momentos permaneciam ali reunidos.
     No geral era sempre assim: ao anoitecer quando desocupados cada um de seus deleites diurnos deparavam-se de frente uns com os outros na hora do jantar.
    Ocupavam o velho casarão que pertencera a seus antepassados. E órfãos que eram convivam já há longo tempo enclausurados naquela casa e restritos a seus hábitos na certa senão excêntricos,  extravagantes.   Qualquer um que contato tivesse com aquele quarteto por assim dizer, haveria de repudiar sua conduta nada sociável.  Há tempos permaneciam naquele ambiente obscuro e sombrio. E não fosse o aspecto irregular de seus hábitos, como dito incomuns, talvez houvesse ainda um meio de se deslocarem de ambiente tão vicioso. Tão sobrecarregado de laços que,  se num aspecto os unia,  por outro  fazia de cada um deles um fantasma em potencial.
     Houve conhecidos que por algum tempo buscaram proximidade, tentaram mesmo alegrar o ambiente que pela resistência dos quatro em acatar qualquer princípio de amizade findaram se afastando.
     E o mórbido e voraz caráter de cada um era o divisor comum daqueles quatro irmãos certamente desafortunados de qualquer tipo de real nobreza de alma. E isso na verdade desde crianças. O que inviabilizava uma possibilidade equitativa de comportamento sadio. Eram então agora três rapazes e uma moça que em potencial na certa se enfrentariam, na disputa e soberba, características de cada um; se tentassem persuadir uns aos outros numa possível mudança de comportamento, ou ainda simplesmente aliarem-se num mesmo propósito, diverso daquele que os unia.
     Compactuados eram num procedimento que os tornava cúmplices uns dos outros.
      Terminado o jantar naquela noite de domingo Norberto  o mais velho dos quatro levanta-se da mesa e anuncia com voz firme:
      - Meus queridos irmãos,  estou de saída. Esta noite a missão é minha, já vou indo até mais.
      - Até Norberto – foi a resposta da boca de alguns.
     Já as trevas reinavam densas quando Norberto atravessou o umbral do sombrio casarão. Passou a chave no cadeado do portão após sair, bem como certificou-se pondo a mão na cintura  se não deixava para trás sua faca de caça  idêntica a de cada um dos outros quatro irmãos .
     Tomou o rumo esquerdo da calçada e a passos vagarosos caminhou por vários minutos displicentemente estacando somente a certa altura devido a um barulho que lhe veio aos ouvidos de passos a se aproximarem.
     Buscou refugiar-se nas sombras o mais que pode e permitiu assim que o transeunte que seguia na mesma calçada que a sua,  passasse por ele  sem se quer notá-lo.
     Aguardou alguns segundos e pôs-se a seguir o estranho que virando as costas e dando conta de que era seguido  apertou o passo. Norberto foi mais ligeiro e atacando o estranho pelas costas, corta-lhe a garganta com sua faca,  arrebatando do sujeito em seguida seus valores pessoais.
    Usando luvas retirou Norberto do bolso do casaco um pedaço de pano e limpou a lâmina da arma embolsando em seguida de volta o pedaço de tecido manchado de sangue.
    Sem demonstrar qualquer temor ou alteração de humor. Deu as costas e rumou de regresso ao antro que lhe servia por lar. Lá chegando procurou como sempre fazer silêncio para não incomodar o sono dos demais. Caminhou rumo ao cofre atrás de um dos quadros da sala e introduziu nele o fruto do latrocínio. Em seguida foi até o porão e atirou o tecido ensanguentado nas chamas do aquecedor da casa e lavou as manchas de sangue da luva numa pia.
      Subiu então de volta para sala, sentou-se por um tempo numa poltrona. O olhar perdido no vazio da sala sombriamente iluminada por algumas velas. Passou-se menos de dois minutos e logo subiu rumo a seu quarto no andar superior.
     Abrindo a porta do quarto mansamente a passos de gato entrou no aposento. Passou a chave, tratou de tirar as vestes, e deitou-se.  Adormecendo logo como tomado pelo sono dos justos.
      Decorridos sete dias, novamente jantavam reunidos os quatro irmãos. Reinava silêncio no ambiente da sala de jantar. Juliano, o mordomo,  que desde o falecimento dos pais dos moços persistia como empregado da casa. De pé em prontidão, atendeu a ordem de tirar a mesa assim que terminaram a refeição.
     Passaram então os quatro para a sala de estar, onde, as chamas das velas dourava o ambiente em trevas. Dimas o segundo irmão abaixo de Norberto, tomou do isqueiro de mesa e ascendendo seu charuto, dirigiu-se aos demais dizendo:
     - Muito bem, boa noite, já estou de saída. Ao que os demais consentiram sem nenhum comentário, a não ser Vitória a mais nova que, num tom irônico e um sorriso enigmático disse: “Se encontrar alguma jóia que me caia bem, eu não me importo de ser presenteada”.
    Dimas sem dar resposta dirigiu-se para a porta e desapareceu na noite escura.
     Assim como Noberto, sete dias atrás, ele também caminhou a passos lentos pela calçada. Olhou o relógio de bolso, já caminhava a uns bons vinte minutos, quando ouviu passos vindos em sua direção. Tornou-se mais vagaroso seu caminhar, e cruzou com ele um casal que na certa passeava pela noite, ou ia rumo à alguma festa visto os trajes.
     Dimas exclamou consigo próprio: “Maldição, não poderia ser um só, tinha que tratar-se de dois!”. E prosseguiu em sua caminhada lenta e compassada. Virou a primeira esquina e deu de ombros com um senhor já com certa idade, este voltando-se para o rapaz, desculpou-se.
    Mal os lábios do velho homem se fecharam em suas palavras de desculpas, e um veio de sangue escorreu no canto dos lábios contraídos. Dimas já o havia esfaqueado em cheio no ventre.
    Tomadas as devidas precauções quanto aos vestígios do crime, assim como o fizera o irmão. Deu as costas e rumou para o casarão. A madrugada já avançava.
    Assim como Norberto, Dimas também evitou ao máximo qualquer barulho. Por sorte deparou-se com a lareira acesa, e ali mesmo atirou o tecido manchado de sangue com o qual limpara sua faca.  Em seguida virou-se de costas e quase morreu de susto, deu de frente com Juliano que  simplesmente lhe inquiriu:
   - Deseja alguma coisa ainda esta noite senhor?
   - Não - foi a resposta de Dimas, suspirando aliviado. Deu um cortês “boa noite” ao serviçal e subiu para seu quarto, após depositar no cofre da parede da sala, um relógio e a carteira do velho que assassinara. Despertou já tarde no dia seguinte.
     Decorridos outros sete dias, mais uma vez reunidos os quatro irmãos à mesa do jantar, desta vez foi Higor que pronunciou a sua sentença de despedida e adentrou-se na escuridão da noite.
     Nessa mesma noite sai  logo atrás do irmão,  Dimas em busca de um local onde comprar os charutos sem os quais não passava. Caminhou distraído por longo tempo, chegou mesmo a parar num local e tomar uma bebida antes de alcançar a tabacaria. Comprados os charutos tomou a direção de volta para casa.  Passou duas quadras e virou à direita dando de frente com  outro homem que vinha na mesma direção dele  com os olhos a contemplar os próprios passos.
    Ao se depararem este num ato súbito finca-lhe no ventre uma faca. O assassino estremece e atônito queda ao chão e debulhasse em lágrimas. Tratava-se de Higor que acabara de assassinar o próprio irmão Dimas.
    Envolvido num terror profundo, ainda assim lhe volta o sangue frio e calculista dos homicidas e deduz de imediato consigo: “devo ocultar o corpo em algum lugar,  pois meu irmão morto se descoberto seria a ruína de todos nós’’. Nisso principia a arrastar o cadáver do irmão para um beco próximo onde  dando graças  a Deus seria possível escondê-lo.
   Em seguida segue para o casarão em busca de participar aos demais o que se passara. Com a alma envolta em dor atravessou a porta da casa e subiu as escadas. O peito arfava, parou por uns instantes para em seguida principiar a despertar cada um dos dois irmãos em seus quartos. Por último chamaria Juliano, o mordomo. Eles na certa em consenso saberiam o que deveria ser feito.
    Esperou Higor impaciente os irmãos na sala de estar sob a penumbra das velas.   Um a um eles se reuniram assombrados com a atitude do rapaz. “O que poderia levá-lo a tal procedimento?” Era o que indagavam consigo próprios.
   Mais aflitos ainda ficaram quando este atirou-se de costas para a parede e vertendo lágrimas pronunciou: - “O Dimas.. -  Eu matei nosso irmão Dimas”.
   O pânico apossou-se de todos e quase em uníssono indagaram: -“O que houve, como sucedeu-se essa tragédia”, acrescentando em seguida da mesma forma num mesmo palavreado: -“E o corpo? O que fez do corpo?”.
      - Está oculto num beco próximo ao local onde deu-se o incidente – foram as palavras de Higor.
     - Juliano trate de preparar-se para seguir com Higor ao local. Trarão os dois o corpo de Dimas para nossa casa -  foi a fala incisiva da irmã mais nova  Vitória  a dar a ordem.
    - Eu e Norberto trataremos enquanto isso de encontrar uma maneira de como livrarmo-nos do cadáver de nosso querido irmão. – Vamos apressem-se.
    Juliano e Higor cumpriram as ordens de Vitória.
    Lançar o corpo do irmão nas chamas do aquecedor do porão foi a solução encontrada por Norberto e Vitória. Isso se daria ainda aquela noite quando regressassem com o cadáver.
    E juntos, Vitória e Norberto, começaram a contar o tempo que batia cadenciado no relógio de pêndulo num dos cantos da sala.
    - Meu Deus, como faremos isso Vitória? Na certa haveremos inclusive de esquartejar o corpo de Dimas para lançar os pedaços no pequeno forno do porão que nos serve de aquecedor na casa.
    - Juliano que trate dessa parte, o que mais podemos fazer? Ou tem você ideia melhor? – retrucou a moça.
    O silêncio estabeleceu-se no ambiente e impacientes aguardavam, sem poder um cruzar o olhar do outro . Omissos em qualquer emoção ou possibilidade de pânico.
    Enquanto isso, Juliano e Higor, que munidos de uma lona que o mordomo providenciara carregavam o corpo por caminhos ocultos pelas vielas próximas. Foram então repentinamente surpreendidos por dois cães que ladrando os assombram e encurralam.
    Sem poder avançar na caminhada ambos já exaustos pelo peso do corpo de Dimas não dão conta de vencer a fúria dos dois cães que avançam e fincando os dentes na lona desvencilham dela o defunto.
    Ao farejarem o sangue mais impossível tornam ainda a marcha e os dois homens veem-se indecisos, se fogem ou enfrentam os animais. Correm então em estado de desespero os dois num mesmo rumo aos atropelos. Não percorreram um caminho muito longo quando repentinamente Juliano aos tropeços leva uma queda e cai estirado de costas no chão. Higor pára em sua fuga e se dá conta que o outro ficara para trás. Volta-se e vê Juliano caído de costas. Aproxima-se e para seu espanto, sangue escorria da cabeça deste. Chacoalhou o corpo e estarrecido percebe que o mordomo já não respira. Havia batido com a cabeça numa pedra com a queda. E o ferimento profundo o matou.
    Maior então é a aflição que se apossa do rapaz. “Santo Deus e agora que farei?” Indaga ele de si no silêncio da noite.  Toma o caminho de volta para o local onde ficaram os cães e o corpo do irmão.
    Ao chegar ao local um terceiro cão já se unira aos outros dois e na certa esfomeados que se encontravam, já devoravam o corpo frio de Dimas. Higor tomado por fúria começa a jogar pedras nos animais procurando afugentá-los.  Jamais deveria ter tido tal atitude, pois enraivecidos os três cães partem para cima dele, que busca fugir, desta vez indo rumo a uma estreita ponte por sobre um riacho por sinal de altura considerável. Mal deu cinco passos por sobre o abismo os cães o alcançam e atacam ferozmente. O rapaz desequilibra-se e vê-se lançado precipício abaixo. Esse foi seu final.
     Enquanto isso no casarão, Norberto e Vitória, impacientes com a demora dos outros dois, ora caminham pela sala, ora sentam-se com o olhar perdido na penumbra das velas. O tempo foi passando e quando menos se deram conta o claro do dia invadia o ambiente.
     Vitória então, como sempre incisiva em suas atitudes, dirigi-se a ir Noberto e diz:
    - Bem já sei comigo que algo de trágico se deu. Não demorariam até o dia amanhecer caso tudo tivesse ocorrido a contendo. Sabemos o que temos de fazer.
    Dirige-se ela ao cofre por detrás do quadro na sala , destrava-o e toma de um frasco com um líquido. Norberto sente o sangue gelar, sabia perfeitamente o que continha aquele frasco.
     Ele e a irmã, bem como os outros irmãos, nunca imaginaram que fosse necessário chegar aquele extremo. Possuíam sim aquele veneno, mas jamais cogitaram a possibilidade de que seria algum dia útil.
     Norberto então toma de dois copos de uma mesa onde havia algumas garrafas de bebidas,  despeja em cada um deles certa quantidade e  pousa os copos na mesa de centro da sala de estar. Virginia despeja neles praticamente em parcelas iguais o conteúdo do frasco. Em seguida os dois irmãos sem dar-se conta unem as mãos numa atitude comovente na certa, tomados de emoção jamais vinda até eles. Emborcam os copos e entornam o conteúdo em poucos goles, num lapso caem mortos ambos estendidos no tapete da sala já iluminada pelos raios de sol da manhã.


                                                       FIM




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