sábado, 5 de março de 2016

"UM CONTO''

"JOREL E SEU CÃO LORD"




“Vá ou voltes,
                                                    Parta daqui ou fiques;
                                                    Morrerás entre o vão e a soleira
                                                    De minha porta”.



     Jorel era um homem digno no sentido mais preciso que se possa atribuir a palavra. Digno na palavra sua dada, imparcial numa discussão formada, indiscutivelmente um homem honrado.
     Talvez por isso mesmo fosse senhor de um cão a ele tão fiel, a ele tão afeiçoado. Merecedor mesmo era ele de um amigo como seu cão, sozinho em seus dias já de avançada idade.
     Perdera a esposa cedo. Cedo desposaram seus dois filhos: Jonatas e Alvarez, suas noras, Rosa e Silvia. Permanecia no entanto o velho homem em viuvez já há mais de trinta anos, sob os cuidados de sua empregada, que continuou com ele após a morte de sua esposa.
    E quem cuidava também de Jorel além da senhora já idosa, era sem dúvida seu cão Lord. Este tinha uma predisposição de afeição pelo dono, que impressionava a qualquer um. Onde quer fosse Jorel, lá estava em sua companhia o cão. Quantas vezes Jorel dentro de casa, não faltava pouco tropeçar no animal que insistia em estar junto a seus pés.
    E assim, a solidão, que antes de tudo se constitui em um estado de espírito, Jorel a preenchia com o fiel companheiro. Era ele, Lord, que muitas vezes sem nem se quer ser solicitado, vinha até o dono e de forma quase humana  punha-se  a seu lado e em seu silêncio de animal, dividia o silêncio humano de Jorel, diluindo a possibilidade de uma ausência, de um vazio de alma no pobre homem já velho.
   Foi então que certo dia, próximo ao anoitecer, quando a velha empregada já estava com o jantar pronto no fogão, surgiu na porta da cozinha, nos fundos da casa um  homem maltrapilho, de aparência sofrida e desolada, e dirigindo-se com palmas para o interior da casa. Aguardou vir alguém até ele. A velha senhora aproximou-se do mendigo e indagou:
   - Pode dizer meu senhor, o que deseja?
    Este por sua vez retirou da cabeça um chapéu envelhecido e sujo, colocou a altura do peito entre as mãos e respondeu:
   - Desculpe incomodar a boa senhora, mas não teria como me ceder um prato dessa comida que tão saboroso aromo exala?
    A velha então disse a ele que aguardasse. Foi até seu patrão e participou a este que havia um homem a chamar na porta dos fundos, na cozinha.
     Jorel prontamente foi ao encontro do tal mendigo. Esse repetiu de forma cerimonial o pedido feito anteriormente a empregada. Jorel simplesmente disse à velha que preparasse um prato e servisse ao pedinte. Este poderia comer por ali mesmo, próximo à soleira da porta.
     Assim se deu. A velha mulher preparou um belo prato, e serviu o mendigo. O qual com um brilho expressivo no olha e na certa com água a salivar-lhe a boca, começou a devorar com ávidas colheradas a comida servida.
     Nisso Lord aproximou-se do homem e principiou a farejar-lhe de perto o seu fedor que infestava já até o interior da casa.
     Foi quando num ímpeto de violência o sujeito deu com o pé bem na queixada do animal, que saiu gruindo em busca de um local para se esconder. Seu dono então, de um sobressalto indagou lá da sala onde se encontrava:
     - O que houve, o que aconteceu? Lord venha cá. – disse o velho.
     A empregada mais que depressa, tendo assistido a cena, correu até Jorel e disse a este o que se passara. Jorel tomado de fúria partiu para a porta onde se encontrava o maltrapilho e da mesma forma como este havia acertado um pontapé em seu cão, deu um também certeiro bem no prato que se encontrava nas mãos sujas do tal sujeito.
     Este esbravejou também irado:
     - Que maldição é esta, então vem um cão para junto de mim em busca de farejar-me o prato que como. E agora essa!  Eu é que levo um pontapé na fome que me rói a barriga, com o meu prato lançado longe.
      Jorel então partiu para a sala e tomando de uma espingarda de caça que conservava em um canto, regressou e apontando-a para o indivíduo alardeou:
     - Desapareça de minha frente seu imundo, do contrário é agora mesmo que lhe meto uma bala no ventre e mato não só sua fome. E corra, desapareça, porque do contrário, é agora que morres na soleira de minha porta.
     O mendigo aterrorizado, nem tempo de por o chapéu de volta na cabeça teve. Saltou para trás, deu meia volta e pôs-se a correr.
     Lord como que sentindo-se  desameaçado, veio para junto do dono, com a queixada sangrando, os dentes lhe haviam furado os cantos da boca. Gemia e já não grunhia, e recostando-se próximo ao dono, aos poucos deitou-se junto a seus pés.
     “Que ei de fazer, me valha meu Deus, maldito canalha que me fere o meu nobre companheiro”, pensou consigo próprio intimamente desolado o  pobre de Jorel.
     E  voltando-se para a empregada, com os olhos meio que já marejados, solicitou:
     - Corre, prepara uma salmoura. É necessário que demos um jeito nisso. O pobre do animal sofre.
     A mulher solicitamente providenciou a salmoura e ambos fizeram o que foi possível na tentativa de estancar o sangue que já gotejava nas beiradas da boca do pobre animal. Este por sua vez resfolegava, e como se ouvisse a voz do dono  a querer confortá-lo de sua dor, mal se movia.
     Fizeram o que foi possível, na busca de certificar-se ao menos que minimizam o sofrimento do cão.  Jorel e sua serva.
     A noite avançava, a velha senhora murmurou que ia se recolher, ao que Jorel assentiu com a cabeça. Permanecia o velho homem sentado numa cadeira próximo ao local onde seu cão se pôs deitado. Na soleira da porta do oitão na cozinha. E aí se prontificava a permanecer, na certa, a noite toda.
     Cochilava vez por outra, mas de imediato abria os olhos e mirava o animal, que permanecia com o seu olhar observador e nada vago, como de costume. Havia porém  nesse olhar uma expressão quase fosca de brilho, uma maneira de bater as pálpebras como que na cadência da dor que na certa latejava persistente.
     O olhar de Jorel então, do cão se estendia porta a fora, varando a noite e contemplando as estrelas no céu.
     E era uma só dor, um único sofrimento o do cão, e de seu dono.
     E assim, arrastaram-se as horas e quando menos deu-se conta os dois, a claridade do dia começou a invadir o ambiente da cozinha, dissolvendo as últimas sombras da noite.
     A velha senhora, em breve viria para junto do fogão preparar o café. Já ouvia Jorel de seu lugar rumores em seu quarto, acordava sempre cedo a idosa empregada.
     Jorel ergueu-se da cadeira, dirigiu-se ao banheiro onde lavou o rosto, e deu com o olhar no espelho, que nada mais fez que devolver a tristeza que se estampava em seu rosto.
     Regressando a cozinha, cruzou com a empregada que nem desconfiou que seu patrão  postara-se por sentinela do animal por toda a noite. Saldou-o como sempre e foi para junto do fogão.
     - Santo Deus! Como pode um homem ser tão desaforadamente bruto? – Foi o que disse a velha ao por os olhos no animal que via imóvel no mesmo canto onde o deixara antes de ir para cama.
     Fez-se silêncio. Reinava na casa uma ausência completa de qualquer possibilidade de alegria. A dor dos três, de Lord, de Jorel e da velha senhora alastrava-se por toda a casa.
     O velho homem tomou seu café, comeu um pedaço de pão acompanhado da empregada à mesa. Lord  pora os dois em cerimônia de pronunciar qualquer palavra. O que falava em alta voz era a dor ainda que, na certa o animal sentia.
     E desandou-se a rotina da casa de forma completamente inaudita.
     O cão que saldava o dia com seus latidos matutinos, quieto. Jorel que sempre encontrava motivo para alguma conversa com sua serva, ora caminhava poucos passos ,indo e vindo na direção de Lord, sem atinar em que dizer, em que fazer. A velha, entristecida com o sofrimento dos dois, sentia lentidão em sua labuta de todo dia.
      Mal sabia aquele homem, tão irmanado em sentimento por seu animal, o que o esperava antes ainda que o dia findasse.
      Se havia tristeza por toda parte, tristeza maior estava ainda por vir.
      Jorel as vezes se postava de cócoras e alisava Lord sussurrando algumas palavras. Palavras que para ele na certa serviam de acalanto ao animal.
      O sol se pôs a pino e o almoço foi servido. Empregada e senhor sentaram-se a mesa e solenemente, fizeram a refeição.
       A mulher dava conta de seus afazeres na cozinha, quando Jorel inesperadamente lhe participou que ia dar umas voltas pelas redondezas, queria tentar dispersar seus pensamentos. E assim o fez.
      Passou-se algumas horas... A velha deixou a cozinha, e solitário nela ficou Lord em sua dor, seu sofrimento.  A empregada foi tratar de ver algumas roupas que tinha a lavar e outros afazeres.
      Nisso retorna Jorel, esgotado de sua caminhada. Adentra a casa. Pendura seu chapéu na parede da sala. E ansioso segue rumo à cozinha, na esperança, quase certeza de que seu cão se encontrava já mais animado. Porém, qual não foi seu espanto, sua dor, ao dar com o animal de olhos fechados, com o corpo virado para o lado oposto do qual permanecera durante a longa e agonizante noite anterior.
      Aproximou-se do animal, ajoelhou-se, e dando-se conta de que esse não mais respirava, levou as mãos ao rosto e desatou em pranto. A velha senhora assombrada regressa à cozinha e por sua vez exclama:
     - Valha meu Deus a meu senhor, e ao seu Lord!
      Jorel simplesmente olha para o vazio do dia ensolarado e murmura:
     - Eu sempre disse comigo, um dia seria assim... Ele haveria de ir antes de mim. Vá meu velho amigo, vá... Sempre o soube eu que morrerias entre o vão e a soleira de minha porta.



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