“PORQUE O JUSTO VIVERÁ DA FÉ”
APÓSTOLO
PAULO
“EIS QUE ENTORNEI DO CÁLICE AMARGO, PROVEI DO FEL E DO
ABSINTO”.
INTRODUÇÃO
Falarei da minha solidão e nada mais. Se na
aurora de minha vida houvesse me entregue às primeiras paixões, talvez hoje não
fosse tão só. Lembro dos primeiros anos de minha juventude e sinto-me saudoso
de mim. Já não me reconheço naquilo que vivo e sinto-me em constante transmutação,
mas o medo me acomete e abrigo em meu peito um espinho, que me machuca aos
poucos e constantemente.
Os anos se passam e temo jamais vir a ser
capaz de realizar um sonho, pois parece que desaprendi do sonhar. Antes vivo o
miasma das recordações funestas de um passado ainda não muito distante.
Descubro-me nostálgico e mórbido, derrotado antes mesmo de travar qualquer
batalha.
E percebo que meus ideais se distanciaram
de mim, e feito um sol que se oculta no horizonte, fenecem antes mesmo de
florescer.
E como um infante que regressa vencido da
guerra, busco bálsamo para minhas feridas, conforto para minhas derrotas,
aconchego para meu corpo.
“O SILÊNCIO INDIZÍVEL”
Preciso ter muito cuidado na percepção da
real abrangência de meu poder. E há dois tipos de poder: um para com a realidade imediata, outro para com uma dimensão paralela. E estes dois poderes não
devem atuar um no campo de ação do outro, ou seja, não devo permitir que estes
dois campos de ação sob meu domínio se cruzem. E é assim, algo como: o que é do
espírito, do espírito. O que é da matéria, da matéria.
Sempre que eu perder a noção dos campos
onde estou ou permaneço, e os poderes de ação se cruzarem, vindo a atuar assim
em campos diversos – um abrangendo, agindo, atuando, no campo de ação do outro,
incorrerá a dor.
O prazer imperará sempre que eu tenha sob
meu controle ambos os poderes.
E o poder um está para o poder dois, e o
dois para o um, assim como o antídoto está para o veneno. Um anula o outro. E
esta anulação dá lugar a um possível equilíbrio.
Da inversão atuante dos poderes vem o
caos; um poder atuando num campo de ação impróprio à sua natureza, resultará
sempre em desordem.
Percebo com nitidez e clareza que isto tem
acontecido comigo desde que se instalou a psicose. E o medo me tem sido por
portal pelo qual atravesso – ou vejo-me obrigado a atravessar dimensões.
Assim definiria o que de modo profético
afirmei em um escrito para mim, e só para mim mesmo: “Eis que haverei de
atravessar a linha que divide a sanidade da insanidade”.
E é duro reconhecer que tenho estado por
um tempo tão vasto, mais na loucura que nos domínios da razão.
Antes de prosseguir, apelando para a força
literária do sentido figurado que se pode estabelecer através do uso da
palavra, já que permaneço entrincheirado pela linguagem, inclusive em seu
aspecto fascista – que me obriga a silenciar - sua maior marca naquilo a que se
propõe: a comunicação. Aproveito para expor aqui um princípio, um princípio que
me servirá de cursor àquilo a que estou me expondo. A saber, descer véu após
véu... Descascando a superfície de meu
eu, que me é por dura crosta, e deixar à mostra – talvez quem sabe? – a
natureza primeira daquilo que sou.
E deixo claro, assim espero, que não haja
confusão entre mim e ti leitor. Entre as coisas que se concernem ao
espírito e à matéria por definição. E caso queira eu ultrapassar os limites
destes dois campos de abordagem, haverei de avisar-te. E o instrumento que
farei uso para tornar isso possível será a lógica. Embora saiba de antemão que
haverá de estabelecer-se entre nós talvez um novo conceito: a lógica do louco.
“...Porque o homem não é só matéria e
reflexão de si próprio em acúmulo de conhecimento. Ele é também consciência e
espírito”.
E com a afirmação anterior estou certo de
que estabeleci um umbral entre a sanidade e a insanidade, naquilo em que creio
pode se constituir tal umbral, ou ao menos alguns de sues elementos.
Isto
feito, espero que se torne mais fácil para mim transitar entre dois mundos que
são por natureza antípodas um do outro, e que se chocam, e que se destroem.
Afinal o primeiro nada mais é que aquilo que anula o segundo, e vice-versa.
Aqui já fica exposta a primeira chaga.
Aquela a qual meu eu foi exposto há muito tempo, e que permanece aberta
latejando de dor. E o pus, excremento da infecção, tem brotado aos borbotões e
tenho agonizado.
Ao findar disto leitor, espero ao menos
ter alcançado um lenitivo para a citada dor, ou quem sabe um antídoto que possa
interromper a natureza latejante da citada infecção.
Voltando, pois aos mundos, e devo dizer
que não me surpreende apelar para este termo mundos, pois há muito já o disse
para mim mesmo: “pela minha insanidade sou capaz de construir e destruir
mundos”.
O difícil aqui é o nível de consciência
com que faço esta afirmação, pois minha danação na verdade tem-se constituído
na minha negação da loucura.
O que tenho vivido é acima de tudo é um
desespero em conseguir provar, inclusive e essencialmente, para mim mesmo, que
desconheço da loucura. E admitir da loucura perante mim mesmo, significa
diminuí-la naquilo em que para mim ela assim o é: a mais preciosa das
preciosidades.
E posso então denominar a loucura como uma
terceira dimensão à qual invado? De forma alguma. A loucura seria em verdade
uma realidade com suas próprias dimensões.
E sendo assim há o louco e o são. Há a
fome do louco, a sede do louco, a sexualidade do louco e o pesadelo do louco.
E vislumbro e me rejubilo nesse vislumbre.
De que há ainda em mim as possibilidades do discernimento de quem é o louco e
de quem é o são. A isso chamo saúde. Saúde mental. A isso defino ainda como
lucidez.
Agora sei que se viaja mesmo pela loucura.
É possível ir e regressar ileso. Mas deve ter-se a decência de pagar o tributo
a Cérbero. E este tributo é o selo, o lacre da sepultura. Pois é necessário que
se diga ainda, que há também a morte do louco. E sua sepultura tem um preço. E
o preço de sua sepultura é obrigatoriamente pago por ele ainda em vida. E isso
se constitui em realidade assustadora e terror, para àquele que sabe da loucura
porque a deveras viveu ou vive.
Mas, então o que estou afirmando?! É
possível que haja comunhão entre a sanidade e a insanidade? Entre a saúde e a
doença no que concerne a mente humana? Sim, assim o é. Afirmo eu. E o
testemunho disto está aqui neste escrito.
Aquele que o ler, ponderando a lucidez que
ele encerra. Ao findar talvez afirme de imediato: “só um louco poderia escrever
algo assim”.
E ainda que para mim, pessoa de gosto
literário requintado, este escrito me pareça desmerecido de profundo valor
neste aspecto, reconheço nele um grande caráter de registro. E qual não é a
ânsia do verdadeiro escritor? No que se consiste sua verdadeira expressão?
Senão no poder de registrar. Registrar o inédito que assim o seja.
Isto dito fica mais fácil para ir
adiante. Logo eu que sempre que quando ergo da pena, é na avidez profunda de
criar, de ser literário.
E agora leitor, imagina o enrouquecer de
uma voz. E imagina mais ainda. Imagina o envelhecer das vozes. E talvez assim
fique mais fácil eu te participar o desvelo do tempo. A ausência extrema de
verdadeira sintonia entre a lucidez e a loucura.
Através do som, um caminho pelo qual
quebram-se os diques, arrebentam-se as comportas que contém o fluído... Através
do som, pelo som, é que sempre me foi possível ingressar na loucura. Na
possível perdição eterna.
E me refiro aqui à perdição de mim para
contigo, naquilo em que se constitui meu eu, nas malhas do ego. E digo perdição
de mim para contigo, porque sei... Ah, como sei, que me perder de ti me
perderia. Mas tu te perderes de mim, isto jamais se daria. E o mistério em que
se constitui essa afirmação garanto que ficará aqui revelado. Por ora só quero
te passar a perfeita lógica, do perfeito contato entre os mundos já citados.
Isto para que eu, de certa forma, pudesse vir a te servir de guia. Pudesse te
servir de meio de resgate, caso algum dia por aí te perdesses.
Porque em verdade, ao final de tudo isto –
apesar da advertência de incorreres em pensar que só um louco fosse capaz de
produzir manuscrito desse cunho, sei que ficará estampado perante ti todo o
esplendor de minha lucidez.
E afirmo que talvez pudesse te servir
como resgate, porque sei que em verdade, só aparentemente é que se pode afirmar
que cada um enlouquece a seu modo. Entrincheirados pelas raízes de seu eu,
dentro daquilo que o louco carrega para dentro da loucura, sempre estará o ego,
como âncora comum a todos nós, no oceano insondável do inconsciente de cada um.
E inclusive no coletivo. E sei que concordarás comigo numa coisa leitor. Sem
dúvida, assim como os sonhos de todos nós, encontram espaço e âmbito de vida neste
vasto oceano citado – o inconsciente – porque haveria de permanecer dúvida de
que a loucura de todos nós não seria a mesma?
E agora vou parecer sucinto. Devo-o ser.
E toma a indagação anterior, assim como uma repreensão entre mim e ti, em tudo
que foi dito até agora. Naquilo que a eloquência, a força do jogo dos signos
pode causar neste meu intento. A saber, o dilaceramento de meu propósito único.
Pois se não te deste conta, poderia eu ir escamoteando com a palavra, e criar
até mesmo bela superfície de pedras raras, por sobre aquela dura crosta em que
afirmei se constituir a loucura e se ocultar o meu eu. Portanto encerro aqui
este manuscrito lacrando como que no silêncio das próprias palavras, minha
loucura e minha lucidez.
FIM
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