sexta-feira, 4 de março de 2016

"O CÁLICE VERTIDO OU O SILÊNCIO INDIZÍVEL"

“PORQUE O JUSTO VIVERÁ DA FÉ”
                                APÓSTOLO PAULO                       


“EIS QUE ENTORNEI DO CÁLICE AMARGO, PROVEI DO FEL E DO ABSINTO”.

                                         INTRODUÇÃO



      Falarei da minha solidão e nada mais. Se na aurora de minha vida houvesse me entregue às primeiras paixões, talvez hoje não fosse tão só. Lembro dos primeiros anos de minha juventude e sinto-me saudoso de mim. Já não me reconheço naquilo que vivo e sinto-me em constante transmutação, mas o medo me acomete e abrigo em meu peito um espinho, que me machuca aos poucos e constantemente.
     Os anos se passam e temo jamais vir a ser capaz de realizar um sonho, pois parece que desaprendi do sonhar. Antes vivo o miasma das recordações funestas de um passado ainda não muito distante. Descubro-me nostálgico e mórbido, derrotado antes mesmo de travar qualquer batalha.
     E percebo que meus ideais se distanciaram de mim, e feito um sol que se oculta no horizonte, fenecem antes mesmo de florescer.
    E como um infante que regressa vencido da guerra, busco bálsamo para minhas feridas, conforto para minhas derrotas, aconchego para meu corpo.


“O SILÊNCIO INDIZÍVEL”

    Preciso ter muito cuidado na percepção da real abrangência de meu poder. E há dois tipos de poder: um para com  a realidade imediata, outro para com uma  dimensão paralela. E estes dois poderes não devem atuar um no campo de ação do outro, ou seja, não devo permitir que estes dois campos de ação sob meu domínio se cruzem. E é assim, algo como: o que é do espírito, do espírito. O que é da matéria, da matéria.
     Sempre que eu perder a noção dos campos onde estou ou permaneço, e os poderes de ação se cruzarem, vindo a atuar assim em campos diversos – um abrangendo, agindo, atuando, no campo de ação do outro, incorrerá a dor.
     O prazer imperará sempre que eu tenha sob meu controle ambos os poderes.
     E o poder um está para o poder dois, e o dois para o um, assim como o antídoto está para o veneno. Um anula o outro. E esta anulação dá lugar a um possível equilíbrio.
     Da inversão atuante dos poderes vem o caos; um poder atuando num campo de ação impróprio à sua natureza, resultará sempre em desordem.
     Percebo com nitidez e clareza que isto tem acontecido comigo desde que se instalou a psicose. E o medo me tem sido por portal pelo qual atravesso – ou vejo-me obrigado a atravessar dimensões.
     Assim definiria o que de modo profético afirmei em um escrito para mim, e só para mim mesmo: “Eis que haverei de atravessar a linha que divide a sanidade da insanidade”.
      E é duro reconhecer que tenho estado por um tempo tão vasto, mais na loucura que nos domínios da razão.
    Antes de prosseguir, apelando para a força literária do sentido figurado que se pode estabelecer através do uso da palavra, já que permaneço entrincheirado pela linguagem, inclusive em seu aspecto fascista – que me obriga a silenciar - sua maior marca naquilo a que se propõe: a comunicação. Aproveito para expor aqui um princípio, um princípio que me servirá de cursor àquilo a que estou me expondo. A saber, descer véu após véu... Descascando a superfície  de meu eu, que me é por dura crosta, e deixar à mostra – talvez quem sabe? – a natureza primeira daquilo que sou.
     E deixo claro, assim espero, que não haja confusão entre mim e ti leitor. Entre as coisas que se concernem ao espírito e à matéria por definição. E caso queira eu ultrapassar os limites destes dois campos de abordagem, haverei de avisar-te. E o instrumento que farei uso para tornar isso possível será a lógica. Embora saiba de antemão que haverá de estabelecer-se entre nós talvez um novo conceito: a lógica do louco.
     “...Porque o homem não é só matéria e reflexão de si próprio em acúmulo de conhecimento. Ele é também consciência e espírito”.
     E com a afirmação anterior estou certo de que estabeleci um umbral entre a sanidade e a insanidade, naquilo em que creio pode se constituir tal umbral, ou ao menos alguns de sues elementos.
     Isto feito, espero que se torne mais fácil para mim transitar entre dois mundos que são por natureza antípodas um do outro, e que se chocam, e que se destroem. Afinal o primeiro nada mais é que aquilo que anula o segundo, e vice-versa.
    Aqui já fica exposta a primeira chaga. Aquela a qual meu eu foi exposto há muito tempo, e que permanece aberta latejando de dor. E o pus, excremento da infecção, tem brotado aos borbotões e tenho agonizado.
     Ao findar disto leitor, espero ao menos ter alcançado um lenitivo para a citada dor, ou quem sabe um antídoto que possa interromper a natureza latejante da citada infecção.
   Voltando, pois aos mundos, e devo dizer que não me surpreende apelar para este termo mundos, pois há muito já o disse para mim mesmo: “pela minha insanidade sou capaz de construir e destruir mundos”.
     O difícil aqui é o nível de consciência com que faço esta afirmação, pois minha danação na verdade tem-se constituído na minha negação da loucura.
    O que tenho vivido é acima de tudo é um desespero em conseguir provar, inclusive e essencialmente, para mim mesmo, que desconheço da loucura. E admitir da loucura perante mim mesmo, significa diminuí-la naquilo em que para mim ela assim o é: a mais preciosa das preciosidades.
    E posso então denominar a loucura como uma terceira dimensão à qual invado? De forma alguma. A loucura seria em verdade uma realidade com suas próprias dimensões.
     E sendo assim há o louco e o são. Há a fome do louco, a sede do louco, a sexualidade do louco e o pesadelo do louco.
       E vislumbro e me rejubilo nesse vislumbre. De que há ainda em mim as possibilidades do discernimento de quem é o louco e de quem é o são. A isso chamo saúde. Saúde mental. A isso defino ainda como lucidez.
     Agora sei que se viaja mesmo pela loucura. É possível ir e regressar ileso. Mas deve ter-se a decência de pagar o tributo a Cérbero. E este tributo é o selo, o lacre da sepultura. Pois é necessário que se diga ainda, que há também a morte do louco. E sua sepultura tem um preço. E o preço de sua sepultura é obrigatoriamente pago por ele ainda em vida. E isso se constitui em realidade assustadora e terror, para àquele que sabe da loucura porque a deveras viveu ou vive.
  Mas, então o que estou afirmando?! É possível que haja comunhão entre a sanidade e a insanidade? Entre a saúde e a doença no que concerne a mente humana? Sim, assim o é. Afirmo eu. E o testemunho disto está aqui neste escrito.
    Aquele que o ler, ponderando a lucidez que ele encerra. Ao findar talvez afirme de imediato: “só um louco poderia escrever algo assim”.
     E ainda que para mim, pessoa de gosto literário requintado, este escrito me pareça desmerecido de profundo valor neste aspecto, reconheço nele um grande caráter de registro. E qual não é a ânsia do verdadeiro escritor? No que se consiste sua verdadeira expressão? Senão no poder de registrar. Registrar o inédito que assim o seja.
     Isto dito fica mais fácil para ir adiante. Logo eu que sempre que quando ergo da pena, é na avidez profunda de criar, de ser literário.
     E agora leitor, imagina o enrouquecer de uma voz. E imagina mais ainda. Imagina o envelhecer das vozes. E talvez assim fique mais fácil eu te participar o desvelo do tempo. A ausência extrema de verdadeira sintonia entre a lucidez e a loucura.
   Através do som, um caminho pelo qual quebram-se os diques, arrebentam-se as comportas que contém o fluído... Através do som, pelo som, é que sempre me foi possível ingressar na loucura. Na possível perdição eterna.
      E me refiro aqui à perdição de mim para contigo, naquilo em que se constitui meu eu, nas malhas do ego. E digo perdição de mim para contigo, porque sei... Ah, como sei, que me perder de ti me perderia. Mas tu te perderes de mim, isto jamais se daria. E o mistério em que se constitui essa afirmação garanto que ficará aqui revelado. Por ora só quero te passar a perfeita lógica, do perfeito contato entre os mundos já citados. Isto para que eu, de certa forma, pudesse vir a te servir de guia. Pudesse te servir de meio de resgate, caso algum dia por aí te perdesses.
     Porque em verdade, ao final de tudo isto – apesar da advertência de incorreres em pensar que só um louco fosse capaz de produzir manuscrito desse cunho, sei que ficará estampado perante ti todo o esplendor de minha lucidez.
        E afirmo que talvez pudesse te servir como resgate, porque sei que em verdade, só aparentemente é que se pode afirmar que cada um enlouquece a seu modo. Entrincheirados pelas raízes de seu eu, dentro daquilo que o louco carrega para dentro da loucura, sempre estará o ego, como âncora comum a todos nós, no oceano insondável do inconsciente de cada um. E inclusive no coletivo. E sei que concordarás comigo numa coisa leitor. Sem dúvida, assim como os sonhos de todos nós, encontram espaço e âmbito de vida neste vasto oceano citado – o inconsciente – porque haveria de permanecer dúvida de que a loucura de todos nós não seria a mesma?
   E agora vou parecer sucinto. Devo-o ser. E toma a indagação anterior, assim como uma repreensão entre mim e ti, em tudo que foi dito até agora. Naquilo que a eloquência, a força do jogo dos signos pode causar neste meu intento. A saber, o dilaceramento de meu propósito único. Pois se não te deste conta, poderia eu ir escamoteando com a palavra, e criar até mesmo bela superfície de pedras raras, por sobre aquela dura crosta em que afirmei se constituir a loucura e se ocultar o meu eu. Portanto encerro aqui este manuscrito lacrando como que no silêncio das próprias palavras, minha loucura e minha lucidez.


FIM


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