“IRA E PERDIÇÃO”
“AS
SETAS DO TODO PODEROSO FORAM
EM MIM CRAVADAS E O MEU ESPÍRITO
SUGA O VENENO DE TODAS ELAS”
"Do livro do profeta Jeremias"
Não sei bem por onde começar essa
narrativa. De certa forma me é constrangedor o que quero alinhavar nesse
contexto. Parece que algo de sórdido e mordaz emerge em meu interior e me
conduz a tocar numa feriada que o tempo se recusa a cicatrizar.
Sempre me impressionaram as narrativas
de guerra. A idéia de um herói que enfrenta os campos de batalha. Apesar disso,
nada de heróico encontrará o leitor nesse relato. Antes se deparará com certa
medida contumaz de vileza, o que não deixa de ser para mim sinônimo de
covardia.
Embora dado à bonomia, jamais levei a
sério a prática da caridade. Sempre tocando as raias do egoísmo. Orgulhoso
mesmo por natureza considerava como certo que na vida havia dois tipos de
pessoas: aquelas que se constituem em possíveis amigos e portanto fáceis de se
amar, e aquelas outras que esbarrando conosco, seja lá porque motivo for, podem
vir a tornar-se nossos inimigos.
Digo isto de antemão de forma descarada,
por julgar necessário deixar logo claro, que embora não tema o julgamento
alheio, costumo sempre, como qualquer um, eximir-me de meus erros de meus
pecados.
Pois se há culpa intrínseca de minha
parte no que possa haver de trágico no que aqui me proponho narrar, eu dela me
sinto isento.
Talvez me fosse mais fácil prosseguir se
conseguisse estender uma ponte entre eu e aquele que me lê, de forma a
transcender do simples relato de um acontecimento, para algo superior a isto,
indo direto a um veredito meu sobre a natureza daquilo que se deu. Mas
considero isso impossível.
Quisera eu que tudo não tivesse passado
de um pesadelo, um transe de um estado febril. Porém, a concreticidade do que
vivi e revesti com o manto sagrado do segredo, torna impossível tomar como tal
aquilo que se deu.
Muito
bem, vamos aos fatos!
Dizia-se ele meu amigo e isso para mim
era indubitável. Convivíamos juntos dividindo o mesmo espaço. Criei tamanha
afeição por ele, que por longo espaço de tempo sua companhia não só me bastava,
como se tornou para mim indispensável.
Entre eu e ele, e o sentimento que
julgava nos unir, só havia a disputa de um querer ser mais solicito que o
outro, dentro daquela amizade que preservávamos há tempos.
Havia um ente em especial, meu gato
serafim, que por mais absurdo que seja. Hoje sei. Ah! Como sei, me foi por fiel
companheiro naquele interlúdio que vivi. Sim, tudo não passou de um parênteses
no transcorrer de minha juventude. No entanto como poderei eu descrever com
fidelidade o horror daquilo que vivi, a não ser afirmando como o fiz no início,
tratar-se de um ferimento que o tempo recusou-se a cicatrizar.
Eu e meu amigo alugávamos uma casa
juntos. O que nos facilitava a vida financeira. Isso além de cada um ocupar-se da
limpeza do ambiente e de possíveis refeições, com o objetivo de economizarmos,
pois dispúnhamos de pouco dinheiro.
De meu gato me ocupava eu. Meu primeiro
e único animal de estimação, jamais proíbe o animalzinho de dividir comigo as
noites de sono em minha cama.
Meu amigo não demonstrava
constrangimento algum em relação a isso. Ao contrário, por vezes até chamava
pelo bichano, embora esse sempre se escusasse de qualquer carinho seu.
Talvez o fato de não termos nenhum
familiar próximo a nós, ou algum envolvimento de ordem amorosa com ninguém,
tenha nos tornado tão próximos, tão exagerademente inseparáveis. E, porque não
dizer leais mesmo um ao outro. Não havia nada de secreto entre eu e ele. Na
hora das refeições dividíamos o que transcorrera quando separados um do outro.
E assim, esse relacionamento pouco
comum, perdurou por considerável espaço de tempo, até o advento da figura
fatídica de Miguel.
Foi numa tarde de sábado. Eu e Malco,
meu citado amigo, encontrávamo-nos num restaurante próximo à nossa casa a beber
e jogar conversa fora. Sem cerimônia alguma um homem de seus trinta e poucos
anos, acercou-se de nós e perguntou se podia tomar lugar à nossa mesa.
Embora constrangidos, consentimos.
Sentou-se então o sujeito e anunciou:
- Chamo-me Miguel. Moro aqui perto e já
os observei algumas vezes antes neste mesmo local. Como sempre venho para cá e
ocupo meu tempo em esvaziar uma garrafa de vinho e nada mais, pensei comigo:
“por que não abordar aqueles dois jovens e travar amizade com eles? O mínimo
que posso ouvir é um não”. E então, o que me dizem?
Malco tomou a dianteira e para surpresa
minha, de forma calorosa acolheu o desconhecido, e saudando-o amistosamente,
falou em nome de nós dois, da alegria de conhecermos alguém com quem partilhar
amizade.
- Sempre é bom aumentar o círculo de
amigos – disse ele.
Ao que
Miguel acrescentou:
- Sem dúvida, e estou certo de que travo
relacionamento com dois jovens na certa inteligentes e comedidos, pois já
percebi que nunca deixam o ambiente embriagados.
E seguiu adiante então num palavreado
desenfreado. Falava de si, dizia-se um homem refinado e nada boêmio, embora
tendo por hábito às vezes passar noites entornando uma garrafa de bom vinho na
companhia de alguma mulher, pois não desprezava também do sexo.
- Na verdade, sou rico. Mas isso não é
algo que me faça limitar ao convívio de pessoas de minha mesma condição
financeira. Ao contrário, acho os ricos não só extravagantes, como no geral
superficiais. O que os torna a meu ver pessoas pouco interessantes.
Na verdade, Miguel não se traia em nada
daquilo que dizia de si. Trajava roupas de grife, trazia um anel de rubi numa
das mãos, e ao pedir seu vinho em nossa mesa, foi exigente quanto à safra, bem
como disse que pedíssemos o que fosse de nossa escolha no cardápio,
despreocupados da conta.
Quanto a isso tanto eu como Malco,
tomados por educação, dispensarmos a cortesia.
E foi assim que aquele homem invadiu
nossa vida trivial e intercalou-se entre nós. Mudando-se de forma incisiva para
dentro de nossa intimidade de leais e inseparáveis amigos. Eu de minha parte
sempre me mantive, ou tentei o máximo que pude manter-me senão indiferente,
distante mesmo de sua indubitável idiossincrasia. O mesmo não parecia dar-se
com meu amigo.
Toda vez, toda vez e sempre que Miguel
visitava-nos, Malco demonstrava-se cortês e solicito. Acudia a todos os desejos
do visitante, não hesitando mesmo falar-lhe abertamente sobre si próprio.
Aquilo de certa forma aguilhoava-me. E em meu íntimo sabia tratar-se de ciúmes.
Foi então que certo dia, logo após uma
de suas visitas, tomado por um impulso desenfreado de animosidade, decidi
segui-lo, com o objetivo de descobrir onde morava. Onde se ocultava a toca
daquela raposa. Pois pressentia no comportamento de Miguel, como que uma trama.
Alguém que armava uma emboscada. Buscava conquistar a amizade minha e de meu
amigo, fazendo-se passar por lobo em pele de cordeiro. Era isso que meu instinto
de cão farejador captava por traz dos ares de bonomia daquele sujeito.
Ele logo ao deixar nossa casa, principiou
uma caminhada a pé, rumo à região onde se encontrava a mais alta burguesia da
cidade. Após uns vinte minutos de caminhada estacou perante o portão de uma
bela casa e destravou-o. No mesmo instante um belo cão de raça veio acudir-lhe
a chegada.
Permaneci à espreita e esperei que
adentrasse a residência, certificando-me que não dera por conta ter sido
seguido.
Próximo ao muro da residência havia
algumas árvores. Não hesitei em subir numa delas. Aquela que acreditei
proporcionar-me a possibilidade de alcançando o muro, saltar para dentro da
propriedade. E assim se deu.
O espaço entre o portão e a casa era
tomado pela mais variada espécie de arbustos, que de forma descuidada ladeava o
caminho que conduzia à entrada principal desta. A qual se constituía numa
construção assobradada e suntuosa. Porém de aspecto envelhecido. Uma luz
mantinha-se acesa à soleira da porta. E certa penumbra atravessava as janelas
apesar das cortinas cerradas.
Passo a passo, aproximei-me de uma
delas. O demônio da curiosidade soprava a meus ouvidos que fosse adiante. Que
desvendasse o que se ocultava por trás daquela ambiente sinistro.
Dei volta à casa pela minha direita, e
para minha surpresa deparei-me com uma pequena varanda de fronte a um quiosque,
onde havia uma outra entrada lateral.
Arrisquei em rodar a maçaneta da parta e
me vi adentrando num aposento às escuras. Não me atrevi ir muitos passos
adiante. Ao contrário, senti o peito oprimido, respirando com dificuldade,
temendo ser descoberto pelo proprietário
que na certa se encontrava em algum outro aposento bem próximo ao que me
encontrava eu.
Acendeu-se uma luz no cômodo que dava de
frente para ao qual eu estava. A luz penetrava por baixo da porta que separava
um ambiente do outro. Caminhei até a porta que dava acesso ao cômodo iluminado,
e tomado de coragem girei a maçaneta de forma a poder observar pela fresta da
desta.
Miguel havia tirado o paletó e a
gravata, e sentara-se numa poltrona. Aquela na certa era a sala principal da casa,
a que dava acesso à de entrada. A
lareira estava acesa.
Tomou ele de uma sineta que se encontrava
numa mesinha próximo à poltrona, e ao seu toque adentrou à sala um velho
em trajes de mordomo. Não pude ouvir o
que conversavam, porém o serviçal subiu as escadas que conduziam ao andar
superior. Regressou pouco tempo depois e se retirou, após haver participado algo
a seu patrão. Este levantou-se da poltrona, foi rumo à lareira, e pegou de uma
garrafa de uma prateleira de bebidas próxima a esta, e em seguida subiu as escadas.
Adentrei a sala e passo após passo
caminhei rumo ao lance de escadas que conduziam ao andar superior.
Lá chegando, deparei-me com um corredor
e vi luz por baixo de outra porta. “É o quarto de Miguel”, deduzi. Aproximei-me
da porta e encostei meu ouvido nela. Ouvi o som de uma música. Tratava-se da
quinta sinfonia de Beethoven.
Foi quando ouvi passos na escada e
aflito corri na direção da primeira porta que alcancei. Adentrando no aposento.
Mal conseguia respirar, tal foi o
sobressalto, o medo de ser pego em delito. Em verdadeira invasão de domicílio.
Não sabia eu que o pior estava por vir.
Antes jamais houvesse cruzado, adentrado o quarto.
Passado alguns momentos pude ouvir a voz
de Miguel dispensando seu serviçal: “Não precisarei de mais nada por hoje,
durma bem Jorge”. Ouvi então novamente passos, na certa era Jorge que se
encaminhava para as escadas.
Foi quando apalpei a parede em busca do
interruptor.
Precisava de luz, pois me sentia
sufocado, e a escuridão parecia tornar mais difícil ainda respirar. Antes meu
Deus, houvesse me retirado e jamais dado luz ao cenário que contemplei.
Embora fosse a luz de pouca intensidade
expôs perante meus olhos um cenário deveras abominável. As paredes daquele
quarto estavam repletas de cabeças de homens, dispostas umas ao lado das
outras, como se tivessem vida e atravessassem as paredes.
Contive um grito, aliás, o terror pelo
qual me vi acometido conteve-me de soltar qualquer som. Engasguei-me e um
calafrio percorreu-me a espinha. Abri a porta, e sem importar-me com o barulho
de meus passos, corri pelo corredor e em seguida escada abaixo rumo à porta por
onde adentrara.
Ao sair da casa, o cão pôs-se a ladrar.
Sem parar fui adiante rumo ao portão, que até hoje não sei como consegui galgar
e saltar para a rua.
Corri por tempo incalculável calçada a
fora. Quando já esgotado julguei-me salvo, estaquei e sentei na sarjeta. O
primeiro pensamento que me ocorreu foi de que havia passado por um transe.
Julguei mesmo ter sido acometido por uma alucinação. Aos poucos recuperei o
sangue frio e respirei profundamente recuperando as forças.
Balancei bruscamente a cabeça buscando
clarear meus pensamentos. Levantei-me então e comecei a caminhar titubeante de
regresso ao aconchego e segurança de minha casa. Junto a meu gato serafim e meu
amigo Malco. Ao chegar encontrei ambos dormindo. Não preguei olho a noite toda.
Pela manhã, disse a Malco que não iria trabalhar pois sentia-me indisposto. Ele
assentiu acrescentando:
- Não me espere esta noite, pois me
comprometi com Miguel em visitá-lo, e na certa passo a noite em sua casa. Ele
afirmou ter algo fascinante para me mostrar. Estou mesmo curioso. Disse-me
inclusive que não seria incômodo algum que pernoitasse lá.
Estarrecido, mais uma vez travou-me o
terror a garganta. Tentei balbuciar alguma coisa, mas não consegui articular
palavra alguma. Malco retirou-se e permaneci naquele estado por longo tempo.
Não me acudia nada que pudesse fazer.
Que providência tomar. Se dissesse algo sobre minha descoberta sinistra a meu
amigo, ele certamente me tomaria por louco.
Apesar de extenuado pela noite passada
em vigília, e pelo sobressalto dos acontecimentos recentes, consegui tomar uma
xícara de café e comer uma fatia de pão.
Comecei a andar então em círculos. Nada
me ocorria, e sabia... Ah! Como sabia, do perigo que corria meu amigo. O que
não tinha idéia é de que Miguel fosse capaz de deduzir ou ter se dado conta de
que fora eu o invasor de sua casa na noite anterior. E ainda pior, a
inconcebível ira que isso despertou naquele homem sinistro e macabro. Bem como
na trágica perdição a que meu ato conduziria.
Passei toda a manhã remoendo os últimos
acontecimentos. Pensamento após pensamento, numa sequência ininterrupta, os
fatos recentes turvavam-me a mente. Findei por adormecer, e quando acordei já
era noite.
Assustado, lembrei-me de Malco e tomado
de desespero, corri rumo à casa de Miguel. Ao chegar lá, espantei-me por
encontrar o portão destravado, bem como a porta da frente entre aberta. Não
ouvi som algum.
Atravessei a sala e dirigi-me ao andar
de cima. Fui direto ao quarto sinistro da noite anterior. Ao adentrá-lo para
surpresa minha as inúmeras cabeças haviam desaparecido. Só havia uma a fitar-me
com um olhar inexpressivo. A de meu amigo Malco.
Dessa vez soltei um grito. Um grito de
dor, de terror. No chão pude contemplar o corpo de meu amigo com a cabeça
decepada.
Sai mais uma vez correndo em desespero.
E desta vez lágrimas escorriam-me pela face. Tornei a sentar-me na sarjeta e
por alguns momentos, julguei que tudo não passasse de um terrível pesadelo.
Levantei-me e titubeante alcancei minha
casa. Lá outra surpresa me aguardava. Ao dirigir-me para o quarto, em busca de
estender-me na cama, meu gato serafim jazia estrangulado sobre os lençóis.
Consumara-se assim a vingança de Miguel.
FIM
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