“UM CREPÚSCULO DE MIM”
É tarde e o
sol se põe. Sinto-me
como que esquecido por todos, até mesmo por Deus.
Não há desespero em mim, nem a solidão me
maltrata. Antes, parece que nesse silêncio todo que me envolve, minha alma
repousa tranquila. O sol se põe no horizonte e os pássaros principiam a se
recolher. Já quase não ouço o canto de nenhum.
E eu que sempre me vi amedrontado de
confrontar-me com o silêncio, descubro que há paz em meu interior. E se há
mistério, nesse momento, o mistério não está em mim.
E seria assim como se me espelhasse nas
águas, o que contemplaria seria minha própria alma. E sei que aquilo que veria
não me assustaria.
O medo,
ou melhor dizendo, a dor dos
solitários não lateja em mim. E sinto como que uma vastidão em meu ser. E é como se fizesse parte e integrado
estivesse à paisagem que me cerca.
Os raios de sol que ainda invadem meu
aposento, não iluminam só meu corpo, mas também o meu espírito. E estou
preparado para a noite que se aproxima. E repouso tranqüilo, em paz no meu
assento, destemido. Ainda que tenha que
permanecer só para sempre. Não há sede. Não há fome. E, principalmente não há
do que se ocupar meu pensamento. E é como se o que sempre temi na solidão, não
fosse o vazio em que ela implica, fosse antes não saber eu, que também deveria
tornar-me vazio de mim, pois só assim com ela poderia irmanar-me, com ela
poderia compactuar-me.
Ah! Quem dera fosse a vida simples como
esse momento que ora se apresenta. Quem dera pudesse eu o tempo parar, e
permanecer nesse encantamento de paz. Nada desejo e nada desprezo.
Talvez, penso comigo, assim estejam o
animal e o vegetal para com a vida, simplesmente inseridos nela. Cumprem seu
ciclo de vida e morte, mas deixam ilesa a essência que as gera, ilesa a
natureza para a qual são como adereços na paisagem, e a ela se incorporam.
É doce e suave essa ausência de confronto
entre eu o animal e a árvore. É como se nesse instante, se asas tivesse,
alçaria vôo; se raízes tivesse as fincaria na terra. Nada mais que isso.
Se esse é o mistério daquele que se faz
eremita. Tornei-me um ermitão sem dar-me conta.
Sábio é sorver cada momento como ele se
apresenta, na sua medida plena. Sem desejar mais nem menos do que aquilo que
nos é proporcionado.
Dispenso os homens. Ainda não consigo
dispensar Deus, pois esse instante que sorvo, sorvo também a Ele e Ele a mim.
Entrego-me ao silêncio e o meu silêncio é
como o do ser que ruge e se aquieta. Da folha que cai. Da brisa que cessa.
Agora a noite se aproxima e mais tranquila
ainda se faz minha alma. Aguardo, caso haja, estrelas que na certa brilharão.
Devo acender minha vela, aquecer meu alimento, aguardar o sono.
Os últimos raios de sol tingem as nuvens
no horizonte, e já o breu se aproxima e tudo se condiz num clímax. À medida que
se vai o dia, cobre este a noite num mesmo instante e percebo que não há
ruptura entre noite e dia.
Da mesma forma não há ruptura em mim,
nesse transe do claro para o escuro. E eis que estou preparado tanto para a luz
como para as trevas. E Deus... Deus parece a mim que impera sobre ambos os
princípios.
E com amor ardente me poria agora por
sentinela. Eis que é chegado o momento, se faz juz a vela.
Despeja o claro da chama sombra sobre o
papel e a orquestra noturna se inicia. Os sapos quacham. Os grilos cantam, um cão ladra ao longe e me é por segurança agora fechar minha porta,
travar minha janela. Se primitivo fosse
me recolheria em minha caverna.
Quem dera me transcorresse a vida como
essa simples quimera. Ou fosse sempre tão leve o fardo de cada dia, como essa
noite que me espera.
Ah! Quão bom seria se ao amanhecer se
desse em mim um abençoado ocaso e fosse eu só no mundo, não como o homem que
sempre fui, mas como Adão no início das eras.
De Deus nada indagaria. Nem companheira ou
companheiro exigiria. Só eu e as feras e a paisagem, com flores e folhas, numa
só comunhão. Numa só harmonia.
Ainda abrirei minha janela, quero a lua e
as estrelas contemplar. Ladra meu cão... E seu ladrar me protege de um possível
ladrão. Vou para fora, não há medo em mim. Aliás, a coragem sempre me foi por
atributo.
Já estrelas no céu brilham, e a lua por
trás de algumas nuvens na certa se esconde. A fome me vem, vou aquecer o meu
jantar. Comerei a luz de velas, e um bom vinho não dispensaria. Depois ouvirei música
e lerei até que o sono venha. E se tiver que vir sonhos, que me sejam eles
suaves, pois já padeci de pesadelos.
E aguardarei o amanhecer, na esperança de
que ele não me seja assustador. Feliz do homem que se satisfaz tanto na
abundância como na ausência de bens. Este na certa saberá usar de sabedoria e
estará preparado tanto para a vitória como para uma possível derrota.
Nunca fui de natureza bélica, e se falei
de paz, devo deixar claro que conheci do caos. E penso que aquilo que percebo
estruturado em mim, não passa de um invólucro de meu caos. Por isso já aguardo
revestido de possível armadura meu amanhã. E acredito seja louvável aquele que
não confia em si mesmo, nem se quer no seu próximo. A natureza humana é de
certa forma incandescente. E cada homem um possível vulcão. E o que se pode esperar
de um vulcão senão um possível e
inesperado romper de lavas?
Mas não me exaspero nem comigo nem com os
demais. Sei aquietar-me e sofrer. E não lamentar-me. E não desistir da fé de
quem sabe um dia, lá após a morte, já bem depois dos vermes terem dado cabo de
minha carne putrefada, vir a ser uma estrela que brilhe altiva, ou uma gota de
orvalho radiante numa manhã ensolarada, ou ainda nada disso. Ser o cessar de
uma pulsação. O expirar de um sopro de vida. Simplesmente o pó que ao pó
retornou.
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